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Atletismo

07/04/2016 11h41

BRASIL DE OURO

Joaquim Cruz: detalhes de um ouro inesquecível

Campeão olímpico em Los Angeles, o brasiliense relembra, com incrível precisão, a caminhada rumo à consagração nos 800 metros em 1984

O jovem Joaquim Cruz tinha mil pensamentos na mente quando foi para a cama na noite daquele 5 de agosto de 1984. Em poucas horas, aquele brasiliense, então com 21 anos, teria pela frente o maior desafio de sua carreira: a final dos 800m dos Jogos Olímpicos de Los Angeles. A ansiedade pela hora da largada estava em níveis altíssimos e encontrar uma maneira de lidar com aquilo era a primeira grande batalha que Joaquim Cruz teria que travar antes de começar a correr.

Um ano antes, em 1983, na véspera da final da mesma prova no Mundial de Helsinque, na Finlândia, Joaquim Cruz vivera noite semelhante. E a forma como lidou com a pressão na ocasião o impediu de chegar à vitória. Ainda assim, ele voltou para casa com a medalha de bronze. Mas, daquela experiência, Joaquim Cruz trouxe lições mais importantes do que o próprio pódio. 

“Em termos de preparação psicológica e emocional, eu cometi um erro grave em Helsinque, no meu primeiro Mundial”, lembra Joaquim, nascido em 12 de março de 1963, em Taguatinga, cidade a 20 quilômetros de Brasília. “Na noite anterior, eu não tinha descoberto ainda como relaxar antes da prova. Passei a noite competindo, correndo... Eu visualizei como iria correr a prova e fiquei trabalhando em cima daquilo a noite inteira. E imaginei só um jeito de correr: saindo na frente, ganhando a liderança e correndo sempre na frente”, recorda Joaquim.

“Na final em Helsinque, eu saí na frente. Mas depois da altura dos 300 metros, o inglês Peter Elliot me roubou a liderança. Então, ele quebrou a minha concentração e a visualização que eu tinha feito da prova. Eu tive que correr uma volta na pista para ganhar a liderança novamente. A 100 metros antes da chegada, ganhei a liderança, mas acabei chegando em terceiro (atrás do alemão Willi Wülbeck, o medalha de ouro, e do holandês Rob Druppers, que ficou com prata). E esse era um erro que eu não iria cometer de novo nas Olimpíadas em Los Angeles”, prossegue.

Assim, quando chegou a seu quarto na Vila Olímpica em Los Angeles na véspera da final dos 800 metros, Joaquim Cruz já havia descoberto uma forma de lidar com a pressão. Embora estivesse sozinho, ele teve uma companhia querida para fazê-lo esquecer a ansiedade. Seu corpo e seu espírito, como sabia, estavam prontos. Mas com sua mente ele não conseguia lidar sozinho. O socorro, então, veio do coração.

“Durante o ano todo de 1984, antes de Los Angeles, eu tive que descobrir uma forma de relaxar e acalmar a mente. E, durante as minhas competições universitárias, descobri uma forma. Eu simplesmente dava uma direção para ela. O que fiz especialmente naquela noite foi criar uma fantasia antes de dormir. Eu ficava trabalhando em cima daquilo antes de pegar no sono”, recorda.

Ao ser indagado sobre o que ele pensou, Joaquim sorriu. E após uma breve pausa, respondeu, ainda um tanto encabulado: “Em 1984 foi o ano em que conheci a Mary, minha esposa até hoje. Eu estava apaixonado. Nós nos conhecemos em janeiro de 1984, começamos a sair e, durante os Jogos, estávamos namorando. Eu pensava na Mary, criava uma fantasia, que não vou entrar em detalhes, e ficava pensando naquilo ali até pegar no sono. Aí eu acordava no meio da noite, voltava à fantasia que tinha criado e pegava no sono novamente. E assim foram os quatro dias de competições durante a Olimpíada. Isso foi o que me ajudou a relaxar. Eu simplesmente dei direção à mente”.

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Joaquim Cruz, com a medalha de ouro em Los Angeles, com Sebastian Coe à esquerda e o Earl Jones à direita. Foto: arquivo

Um tempo arrepiante

A confiança de Joaquim Cruz estava em patamares elevadíssimos às vésperas dos Jogos Olímpicos de Los Angeles 1984. Um ano antes, ele havia disputado, pela Universidade de Oregon, onde estudava, a conferência universitária do lado oeste dos Estados Unidos. Ali, além de vencer a prova, Joaquim Cruz quebrou o recorde universitário dos 800 metros.. Seu ótimo desempenho o fez perceber que ele estava no caminho certo para correr nos Jogos Olímpicos do ano seguinte. E, no Campeonato Universitário Nacional, ele teve essa confirmação.

Joaquim Cruz, com Luis Alberto, seu único técnico e seu segundo pai. Foto: Arquivo

“Em 1984, o Campeonato Nacional Universitário foi disputado na cidade de Eugene (no estado de Oregon), praticamente na nossa casa. A nossa equipe estava forte mesmo e então aquele foi um ano em que tudo deu certo. Como eu estava me preparando para as Olimpíadas, ter um campeonato em casa era quase um teste de Olimpíada. Até porque, no calendário, eu tinha a semifinal dos 800 metros no primeiro dia, no outro dia a semifinal dos 1.500 metros, no terceiro dia a final dos 800 metros e, no quarto dia seguido, a final dos 1.500 metros. E isso era o que eu iria viver nas Olimpíadas de Los Angeles nos 800 metros. Nessa prova, a disputa seria feita em quatro dias seguidos. Então falei: ‘Vamos encarar isso aí porque vai ser esse tipo de rotina que vou viver durante os Jogos’”, lembra.

“No Campeonato Universitário, eu venci a semifinal dos 800 metros, venci a semifinal dos 1.500 metros, venci a final dos 800 metros e venci a final dos 1.500 metros. Foi um feito que, até então, só um outro atleta dos Estados Unidos tinha conseguido, que era ter ganhado tanto os 800 metros quanto os 1.500 metros no mesmo campeonato”, diz Joaquim, orgulhoso. “Ali, a tensão e a pressão de competir bem em casa foram aliviadas. A cidade de Eugene tem uma tradição longa no atletismo. E o estádio estava lotado quando ganhei os 1.500 metros. Então a vitória foi muito celebrada”, continua.

Assim, quando desembarcou na Califórnia em 1984, Joaquim Cruz, amparado pela confiança adquirida no Campeonato Universitário, teve a certeza de que ele estava, de fato, bem preparado para correr nos Jogos Olímpicos. “Eu cheguei a Los Angeles uma semana antes dos Jogos começarem. Fiz alguns treinamentos e teve um treinamento-chave. O último que fiz antes de começar a competição me deu uma indicação de que eu estava realmente preparado. Se o ritmo da prova fosse fraco, eu estaria bem de velocidade. Se fosse forte, eu estaria forte também”, conta Joaquim.

“Eu fiz um treinamento de 600 metros e um de 400 metros. Eu fiz a minha melhor marca nos 600 metros naquele dia, descansei dois minutos, e fiz uma marca nos 400 metros que até hoje eu acho que o Luis Alberto me falou o tempo errado para me fazer crescer ali na hora”, continua, referindo-se a seu primeiro e único técnico, que acabou por se transformar em um parceiro dentro das pistas e um segundo pai fora delas.

“Eu fiz 1min14s nos 600 metros e saí com o ácido lático até no fio do cabelo. Depois, era para eu descansar quatro minutos e fazer um tiro de 400 metros. Mas quanto mais eu esperava, mais o ácido lático aumentava. Então, depois de dois minutos, eu falei: ‘Luis, eu vou sair agora’. Aí eu fiz os 400 metros e terminei achando que tinha corrido em 55 ou 56 segundos. E ele falou 52. Aí eu pensei: ‘Nossa!’ Eu até me arrepiei todo. Naquela hora eu pensei: ‘Ninguém vai ganhar essa Olimpíada de mim”. Eu saí da pista super confiante e falei para mim mesmo: ‘Agora o que eu tenho que fazer é só trabalhar a minha parte mental’”.

Tensão no ônibus

Pensar na namorada ajudou Joaquim Cruz a atravessar em paz a noite de 5 de agosto e a madrugada do dia 6. Mas, ao despertar, ele ainda teria um dia inteiro pela frente antes de disparar no fim daquela tarde na pista do Los Angeles Memorial Coliseum, sede das competições de atletismo dos Jogos Olímpicos de 1984.

“Eu acordei cedo, umas 7h, mas fiquei na cama até as 8h. Depois, levantei, tomei banho e fui tomar café”, recorda Joaquim. “Após o café, o Luis Alberto me chamou para caminhar. Quando você está nervoso e só tem a final da Olimpíada pela frente, você quer reservar o máximo de energia possível. Então, aquela foi a caminhada mais longa e cansativa da minha vida. Eu lembro que se estivesse andando e alguém falasse ‘Bú’ pra mim eu cairia. Eu estava muito frágil. Foi uma viagem demorada, mas rápida ao mesmo”, continua.

“Eu voltei para a Vila (Olímpica) e continuei fazendo o que estava fazendo todos os dias. Os quartos tinham uma sala de estar e eu peguei um travesseiro, o coloquei em cima da mesinha e fiquei ali, deixando aquela sensação tomar posse do meu corpo. Fiquei cozinhando a mente, né? E controlando aquele sentimento durante um período. Fiquei uma hora ou uma hora e meia ali, deitado. Depois, desci para tentar comer alguma coisinha para o almoço, mas nem comi muito. Aí voltei, peguei minhas coisas e me encontrei com o Luis na parada de ônibus (no lugar onde o ônibus que levava os atletas para o Estádio Olímpico parava), pois a gente já tinha combinado onde iríamos nos encontrar”.

O Los Angeles Memorial Coliseum, palco do inesquecível triunfo de Joaquim Cruz nos Jogos Olímpicos de 1984. Foto: Arquivo

Em episódios de grande ansiedade, qualquer contratempo pode se transformar em um estímulo à tensão. E foi exatamente isso que Joaquim Cruz e Luis Alberto perceberam na viagem até o Los Angeles Memorial Coliseum.

“No ônibus, eu normalmente colocava a cabeça na poltrona da frente e tirava um soninho sem me deixar dormir profundamente. E uma coisa de anormal que aconteceu foi que o ônibus não se movia. Pegamos um congestionamento bravo mesmo. Me lembro que olhei para o lado, para o Luis Alberto, e ele estava super tenso e nervoso. O ônibus não se movia e a gente tinha que chegar. Eu até evitava olhar para não ficar nervoso também e até flertei com a ideia de o ônibus não chegar antes da hora da competição. Mas não consegui alimentar aquele pensamento negativo. Estava tão confiante que a minha natureza não permitiu que fizesse aquilo”, detalha Joaquim Cruz.

“Conseguimos chegar a tempo para o aquecimento e, normalmente, eu deitava na pista antes do aquecimento durante uma hora e fazia minha concentração. Mas dessa vez não deu. O bom foi que eu estava fazendo o aquecimento na Universidade do Sul da Califórnia, a USC (University of Southern California), que fica perto da UCLA (University of California, Los Angeles). E ninguém estava usando aquela pista. Então foi praticamente como se estivesse no meu mundo, solitário, e deu para fazer bem meu aquecimento”.

Alheio a tudo o que rolava dentro do estádio, Joaquim Cruz ainda hoje se recorda bem do incrível choque que sentiu quando pisou no lugar onde escreveria o capítulo mais especial de sua vida esportiva. “Quando cheguei à pista de aquecimento do Coliseu e vi os atletas treinando, me deu aquele fluxo de adrenalina. Eu senti que algo maior do que a minha vida iria acontecer”, conta.

Faltava pouco para a largada. E então teve início o ritual que marca a preparação de todo o atleta para as grandes provas. “Coloquei a sapatilha, fiquei trotando ali, e, naquele local, o Luis Alberto não era permitido entrar. Ele não tinha credencial, só os atletas. Mas ele tinha acesso a uma parte do local que ele conseguiu chegar perto. Mas tinha uma grade. Na hora de entrar na pista, fui lá conversar. Ele perguntou como eu estava e falei: ‘Beleza!’. Conversamos novamente sobre a tática. Existiam duas a serem executadas. Nós nos despedimos, entrei na pista e parece que foi tudo combinado. Era como se já estivesse escrito”, narra.

Joaquim Cruz, então, sentiu o segundo choque naquele fim de tarde. “Quando entrei na pista e tive contato com o povo, me arrepiei todo. Evitei olhar para cima para não ter contato com os torcedores, porque o público, às vezes, pode ser intimidador e na maior parte do tempo é. Caminhamos uns 100 metros até a linha de largada. Ali, o  difícil era controlar as emoções e consegui fazer isso. Eu senti que a minha mente estava tranquila, senti que estava no controle da situação”.

Queniano como coelho

No Brasil, a expectativa era enorme. Em todo o país, milhões de pessoas acompanhavam pela televisão o momento da largada. Àquela altura, muitos confiavam que Joaquim Cruz poderia fazer algo espetacular em Los Angeles e, com isso, resgatar a herança de Adhemar Ferreira da Silva, o único que, até ali, tinha dado medalhas olímpicas de ouro para a nação no atletismo com seus feitos no salto triplo nos Jogos de Helsinque 1952 e Melbourne 1956.

A imprensa brasileira, obviamente, sabia que aquele corredor de pernas longas era talentoso e que seu potencial permitia, de verdade, sonhar com grandes façanhas. Assim, Joaquim Cruz tinha a seu lado, mesmo que à distância, um apoio enorme.

A primeira volta: queniano lidera e vira o “coelho”. Foto: Getty Images

A história de ouro teve início, como de praxe, com um breve anúncio ao microfone. “Falaram: ‘Em suas marcas’ e, na minha mente, eu pensei: ‘Agora é comigo’’, relembra Joaquim. “O meu foco estava mais em como é que eu iria executar o combinado. Me lembro que depois da largada, nos primeiros 130 metros, eu tive um momento de dúvida: ‘Vou ou não vou?’, pensei. E então falei: ‘Não. Vou continuar com a minha jornada aqui, como o combinado’, e aí fui para a frente”, continua.

“Nos primeiros 200 metros aconteceu uma coisa fora do comum: eu estava brigando não pela liderança, pois os primeiros 200 metros, nos 800, é mais de uma briga para ver quem consegue a melhor posição durante a prova. Às vezes, o atleta tem que brigar um pouquinho ali. Ele tem que sair um pouquinho mais forte e determinar logo no começo a posição. E o queniano já estava na minha frente e eu queria ficar logo atrás dele”, conta Joaquim, referindo-se ao queniano Edwin Koech.

“Mas o americano encostou e me deixou encurralado. E tive que brecar, sair pro lado e, ao fazer aquilo, eu peguei a melhor posição durante a prova. Eu só tive que usar o queniano para me levar pelos primeiros 400 metros, 600 metros. Eu o usei como coelho”, explica Joaquim, referindo-se ao termo que, no mundo das corridas, serve para designar os atletas que se posicionam na frente dos rivais e ditam o ritmo da prova.

Os rivais

Joaquim Cruz correu naquele 6 de agosto de 1984 com o número 093 na camisa. E ocupou a raia número 6 na largada. Na raia 3 estava seu principal rival: o britânico Sebastian Coe, recordista mundial da prova e que, quatro anos antes, tinha faturado a medalha de ouro nos 1.500 metros e a prata nos 800 metros nos Jogos Olímpicos de Moscou 1980. Mas havia outras ameaças...

“Eu tinha vários rivais. Tinha o Ovett (o britânico Steve Ovett), que tinha ganhado a Olimpíada de 1980, em Moscou (foi ouro nos 800 metros). Tinha os dois americanos, o Earl Jones, que tinha 19 anos, era dois anos mais novo do que eu e estava correndo muito bem, e o Johnny Gray, que já tinha participado de algumas provas comigo na Europa e que também estava correndo em casa. E tinha os quenianos, além do recordista mundial, Sebastian Coe, que queria ganhar o ouro nos 800 metros depois de ter perdido a medalha de ouro em 1980. Ele vinha com tudo para ganhar o ouro em 1984”, diz Joaquim.

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Imortalizado em selo: Joaquim Cruz vigia seu principal rival, o britânico Sebastian Coe. Foto: arquivo

“O meu foco foi mais em cima do Sebastian Coe, porque eu conhecia o estilo de corrida dele. Ele era um atleta forte, muito veloz e, então, eu tinha que ter cuidado para não cometer o erro que ele cometeu em 1980 e sair na hora errada. Na final, eu tive que correr a prova toda olhando para trás e marcando ele o tempo todo”, prossegue.

Arrepio na chegada

A prova dos 800 metros é um jogo breve. São anos de preparação para poucos instantes de desafio. E nesse xadrez de pernas, os metros finais são determinantes. Em Los Angeles, Joaquim Cruz sabia disso melhor do que ninguém.

“Durante a corrida, foquei em alguns pontos importantes. Nos primeiros 200 metros, eu tinha que brigar por uma posição ideal para evitar um possível caixote (ficar embolado com outros atletas). Depois que consegui essa posição deu um branco. Na minha cabeça, eu pensava que tinha que vigiar o Sebastian Coe. Então, fiquei o vigiando dos 200 metros até os últimos 300 metros. Eu fiquei vigiando o Sebastian Coe o tempo todo. Se você assistir à prova, vai perceber que a cada cinco passadas eu dava uma olhada”.

Após ter concluído a metade da prova com tudo tendo conspirado a favor, Joaquim Cruz sentiu que havia chegado o momento em que ele teria que assumir as rédeas da disputa.  Mas, naquele dia, ainda seria preciso controlar os nervos.

“Ali, na altura dos últimos 300 metros, no final da curva, foi onde eu treinei o meu corpo e a minha mente para colocar uma segunda marcha. Normalmente, a maioria dos atletas, eu diria que 95% dos atletas de meio-fundo, começam a puxar nos últimos 500 metros. Mas, realmente, começam a puxar mesmo, a dar o kick, nos últimos 250 metros”, explica Joaquim.

“Como eu tenho a passada muito longa, eu falei: ‘Não. Eu vou treinar meu corpo para sair um pouco mais cedo, nos últimos 300 metros’. Se você assistir dez provas minhas, vai perceber que na altura dos 300 metros finais eu abaixo a cabeça e começo a acelerar um pouco mais. Mas ali, naquele local, na Olimpíada, eu tive que falar para mim mesmo: ‘Não vai ainda... Tenha paciência’”, prossegue.

Os últimos 200 metros da final em Los Angeles: Joaquim Cruz prepara a disparada que o daria a medalha de ouro. Foto: arquivo

“Então eu fiquei segurando. Mas o ritmo já aumentava automaticamente, porque o queniano estava puxando a prova. Eu dei uma olhadinha para o lado, senti que o americano estava vindo, faltando uns 280 metros. Eu dei outra olhada nos últimos 200 metros para o lado e não vi ninguém. Eu ainda estava em segundo. Então, nos últimos 80 metros, eu falei: ‘Agora eu vou!’”.

Foi nesse exato momento que Joaquim Cruz – um menino humilde que queria ser jogador de basquete e que costumava correr descalço pelo Cerrado para brincar quando criança em Taguatinga – sentiu que algo extraordinário estava prestes a acontecer. 

“Quando eu falei ‘agora eu vou’, eu me arrepiei todo. Eu dei uma olhada para frente, para onde ficava a arquibancada, e eu já não via mais ninguém. Era como se o povo todo tivesse se derramado na pista. E as raias... Eu não percebi detalhes nas raias. Eu só via uma linha toda. Eu me arrepiei e dei o kick final”.

Vitória via satélite

Quando disparou, Joaquim Cruz deixou de ter rivais no Los Angeles Memorial Coliseum. Suas passadas longas e rápidas e o ritmo forte nos metros finais foram demais para Sebastian Coe e todos os outros corredores. Tudo o que eles podiam fazer era acompanhar o brasileiro com os olhos e vê-lo se distanciando rumo à vitoria.

Joaquim cruzou a linha de chegada exatos um minuto e quarenta e três segundos após ter largado. Com isso, estabeleceu um novo recorde olímpico em 1984. Sebastian Coe veio logo atrás, com 1min43s64, seguido por Earl Jones (1min43s83). Mas todos os olhos no estádio seguiam apenas Joaquim Cruz.

Com o triunfo, o brasiliense se tornou o primeiro atleta do país a ganhar uma medalha de ouro olímpica em provas de pista. E passados 32 anos, ele segue como o único a ter protagonizado a façanha.

Joaquim assume a liderança... E alcança a consagração máxima em Los Angeles. Fotos: Getty Images

E aqui cabe uma observação marcante: a vitória de Joaquim Cruz foi transmitida ao vivo para todo o Brasil. Com isso, pela primeira vez na história os brasileiros puderam assistir, em tempo real, um dos seus atletas tornando-se campeão olímpico. A imagem de Joaquim Cruz trotando no estádio com a bandeira do Brasil após o triunfo levou milhares às lágrimas.

“Quando atravessei a linha de chegada, eu falei: ‘Meu Deus, obrigado, meu Deus!’ E a próxima coisa para fazer era pegar a minha bandeira que estava com o síndico do meu apartamento lá na curva, na saída dos 1.500 metros. Eu decidi dividir aquele momento com o povo brasileiro. Foi mais para identificar o meu país, né? Aquilo ali foi uma forma de identificação e de dividir aquele momento com o povo brasileiro. Carregar a bandeira do Brasil foi uma forma de comemorar com o povo brasileiro”, explica o campeão olímpico.

Uma vida plena

É comum ouvir dizer que o brasileiro não tem memória. Pode ser que seja verdade. Mas, em se tratando de Joaquim Cruz, essa regra não vale. O ouro conquistado há mais de três décadas ainda reluz na memória de muitos. E serviu de inspiração para uma geração de atletas, um deles, inclusive, cujo destino reservou um episódio igualmente emocionante em Jogos Olímpicos.

“Eu não tinha televisão em casa. Vi aquela prova quase um ano depois. Me lembro que eu estava na casa de um amigo e vi aquela imagem, que passou em um programa esportivo, do Joaquim dando a volta olímpica. Aquela imagem, mesmo um ano depois, foi determinante para que eu pudesse construir a busca desse sonho de um dia me tornar um atleta olímpico. Então, me influenciou muito”, lembra o ex-maratonista Vanderlei Cordeiro de Lima, medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de Atenas 2004.

O campeão comemora com a bandeira brasileira e leva o país inteiro ao delírio: pela primeira vez os brasileiros assistiram ao vivo um de seus atletas se tornar campeão olímpico. Foto: arquivo

Vanderlei ficou imortalizado na história olímpica pela forma nobre como reagiu ao bizarro ataque que sofreu em Atenas de um fanático religioso irlandês, que o tirou da pista no quilômetro 35 da maratona na Grécia, quando ele liderava a última prova dos Jogos Olímpicos.

Por conta disso, Vanderlei foi agraciado com a Medalha Pierre de Coubertin, uma das maiores honrarias concedidas pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) e destinada apenas àqueles que demonstram, durante suas carreiras, um alto comprometimento com os valores esportivos e humanitários.

Se Joaquim Cruz segue como o único brasileiro dono de um ouro em provas de pistas, Vanderlei Cordeiro de Lima é o único do país a ter subido ao pódio olímpico em provas de fundo e é também o único atleta latino-americano a receber a Medalha Pierre de Coubertin.

Em agosto, Joaquim, Vanderlei e milhões de brasileiros viverão novas emoções olímpicas, desta vez no Brasil. E para o campeão dos 800 metros dos Jogos de Los Angeles, esse momento será a coroação de uma vida dedicada ao esporte.

“É uma oportunidade tremenda. Tanto para quem vai disputar a Olimpíada, quanto para aquele garoto que nem sabe ainda o que vai fazer da vida. Ele, quando assistir à Olimpíada, vai poder falar: ‘Eu vou participar de Jogos iguais a esse e vou vencer’. Essa aí é uma oportunidade que todo brasileiro poderá ter”, acredita Joaquim Cruz, que, quatro anos depois de ter brilhado em Los Angeles, por pouco não se tornou bicampeão olímpico como Adhemar Ferreira da Silva. Nos Jogos Olímpicos de Seul 1988, Joaquim ficou com a prata.

“Eu sou o atleta mais abençoado na face da Terra”, afirma. “Quando nasci, ir para as Olimpíadas era uma coisa quase impossível. E consegui fazer isso. Ganhar uma Olimpíada, então, era coisa de outro mundo para um brasileiro. E consegui fazer isso. E estar vivo para ter a oportunidade de ir a uma Olimpíada, vencer uma Olimpíada e ver uma Olimpíada vindo para a sua casa... Isso aí é demais! Se eu morrer depois das Olimpíadas do Rio, vou morrer já com tudo feito na minha vida”, encerra, emocionado, Joaquim Cruz.

Luiz Roberto Magalhães – brasil2016.gov.br