Atletismo
Brasil de ouro
Adhemar Ferreira da Silva: o brasileiro com vocação para o aplauso
Era final de agosto de 1987, em Roma. A cidade estava agitada em função do Mundial de Atletismo. O tradicional Hotel Midas era um point badaladíssimo. Ali, quando a noite caía, o bar se transformava em parada obrigatória de uma turma animada, recheada de lendas do esporte. Eles bebiam, conversavam, recordavam proezas e listavam conquistas. Conversas que quase sempre silenciavam momentaneamente quando Adhemar Ferreira da Silva subia ao palco para cantar e ser aplaudido com uma de suas músicas preferidas: Manhã de Carnaval.
“É uma das músicas do filme Orfeu Negro. A letra é de Antônio Maria e a música, de Luiz Bonfá. Era uma canção que o Adhemar adorava. Ele era afinado e tocava violão. E não cantava só essa”, relata o jornalista Benê Turco, hoje com 62 anos, muitos deles de convívio com Adhemar. “Nesse Mundial de 1987, a Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF) comemorou 75 anos e fez uma pesquisa com especialistas do mundo inteiro. A ideia era saber quem eram os 10 melhores da história em cada prova. No salto triplo, o Adhemar, o João do Pulo e o Nelson Prudêncio ficaram entre os top 10”, recorda.
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A cena no “Midas” é simbólica por traduzir algumas das faces de uma pessoa capaz de seduzir diferentes plateias e de transformar, senão em ouro, em competência quase tudo em que tocava. A música, paixão nos momentos de lazer, foi parte da trilha de longa metragem que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro e a palma de ouro em Cannes, com Adhemar no elenco. O hotel no exterior, um ponto de passagem comum em vários momentos na carreira de um atleta que foi bicampeão olímpico, tricampeão dos Jogos Pan-Americanos, recordista mundial e jamais se aquietou: formou-se em Direito, Belas Artes, Relações Públicas e Educação Física. Gostava de línguas e falava sete idiomas: português, inglês, francês, italiano, espanhol, finlandês, alemão e japonês. Foi jornalista e também enveredou pelo campo diplomático quando foi indicado pelo escritor Antônio Olinto ao Presidente João Goulart a substituí-lo na Embaixada Brasileira na Nigéria, onde atuava como Adido Cultural. O objetivo era reforçar a ideia de que o Brasil era um país racialmente democrático e Adhemar respondeu ao presidente que aceitava o desafio munido de uma vontade imensa de descobrir as suas raízes.
“Eu convivi com o Adhemar intensamente por mais de 20 anos. Ele falava bem, escrevia bem e era de fácil trato. Gostava de conversar. Viajamos juntos a muitas competições. Fomos para Olimpíadas, Pan-Americanos, Mundiais. E ele sempre facilitava as coisas, não só para mim, mas para qualquer jornalista que precisava falar com outros atletas. Era solícito, mesmo com aquele jeito meio formal de falar”, conta Benê.
Fim de jejum e nascimento da volta olímpica
Vale aqui um corte rápido. Da cena no hotel para 31 anos antes: em 1956, o mesmo cara esguio e de ar formal arrancou, em Melbourne, aplausos de milhares de torcedores. Em apresentação de gala na Austrália, ele cravou 16,35m no salto triplo e estabeleceu um novo recorde olímpico. A marca tornou ainda mais reluzente a segunda medalha de ouro de Adhemar nos Jogos. Ali, ele se tornava o primeiro bicampeão olímpico do Brasil.
A Oceania foi o apogeu de uma trajetória consistente. Quatro anos antes, nos Jogos de Helsinque, na Finlândia, Adhemar havia sido ouro com 16,22m, o recorde mundial até então. E ele já havia registrado a melhor marca da história duas vezes antes.
O topo do pódio na Finlândia encerrou um jejum de 32 anos. Depois de Guilherme Paraense, que fez história no tiro esportivo na Antuérpia, em 1920, o país, finalmente, tinha um segundo herói olímpico. E um novo herói capaz de ser inovador até na forma de comemorar. Em 1991, durante entrevista a Galvão Bueno, Adhemar narrou um fato marcante no Estádio Olímpico de Helsinque. Logo depois de estabelecer o recorde mundial, aplausos ecoavam pelas arquibancadas. “Um dos juízes me disse: ‘O público quer que você dê uma volta’. E eu, com prazer, o fiz, porque queria encontrar um meio de agradecer àqueles que me ajudaram a ganhar o ouro. E foi essa volta que, a partir de então, começou a ser conhecida como volta olímpica”, lembrou Adhemar.
A carreira prosseguiu e em 1960, em Roma, Adhemar despediu-se dos Jogos Olímpicos. A apresentação não foi de gala. Não houve pódio, medalhas ou recordes. Mas o que ele encontrou na Itália o marcou profundamente. “Foi minha quarta participação em Jogos Olímpicos. Eu saí daqui com 16,08m, uma marca boa ainda, mas o drama começou no momento em que começou a competição”, narrou Adhemar em entrevista disponível no Youtube. “Do lado de fora, Dietrich Gerner (alemão e técnico que o acompanhou por toda a carreira). Dentro, eu. Corria, saltava e o resultado não vinha. O Gerner dizia: ‘Mais força. Reaja´. E eu dava mais força, reagia, mas o resultado não aparecia. E assim se passaram as três tentativas da fase classificatória, e não me classifiquei para a final”, prosseguiu o bicampeão.
“Então, juntei meu material e fui deixando a pista. Uma coisa me chamou atenção. Uma salva de palmas ensurdecedora. A prova do salto triplo estava com o Schmidt, um polonês muito bom (que ganharia o ouro em Roma, com 16,81m). E eu olhei para o local do salto para saber, pois achava que o Schmidt havia batido o recorde olímpico ou mundial, e que os aplausos eram para ele. Mas, ao olhar bem, a prova estava paralisada, como as demais no estádio. À medida que ia deixando o estádio, as palmas aumentavam. Aí fiz um retrospecto da minha vida e concluí que aqueles que estavam aplaudindo eram os que me conheceram em Londres (em 1948, quando Adhemar disputou os Jogos Olímpicos pela primeira vez), me aplaudiram em Helsinque e voltaram a me aplaudir em Melbourne. Era um desejo de feliz fim de carreira”.
Além das duas medalhas de ouro olímpicas, ele brilhou nos Jogos Pan-Americanos, competição que venceu em três ocasiões – em Buenos Aires 1951, Cidade do México 1955 e Chicago 1959 –, tornando-se o primeiro tricampeão pan-americano do Brasil, feito que só seria igualado 40 anos depois. Foi no Pan do México, inclusive, que ele atingiu a maior marca da carreira, 16,56m, estabelecendo, pela quinta vez, o recorde mundial.
O reconhecimento definitivo ao legado do atleta, que morreu em 12 de janeiro de 2001, veio em 2012, ano do centenário da IAAF. A lista inaugural de 12 nomes que abriu o Hall da Fama da Federação Internacional de Atletismo já trazia Adhemar Ferreira da Silva, ao lado de lendas como Jesse Owens e Paavo Nurmi. Atualmente, há 48 homenageados. Adhemar segue sendo o único brasileiro.
Milhões de títulos
Adhemar teve dois filhos. Um acidente de moto 30 anos atrás forçou uma despedida do filho que levava seu nome, Adhemar Ferreira da Silva Junior, em um dos momentos mais difíceis da vida do bicampeão. Coube a Adyel Santos Ferreira da Silva a tarefa de seguir com o pai. E hoje, recordar os momentos vividos ao lado dele é um exercício que lhe remete a carinho, respeito e admiração.
“Se o Brasil hoje ainda dá pouca oportunidade para quem nasce pobre, imagina naquela época. Então, é claro que ele foi milhões de vezes campeão na vida”, afirma Adyel. “À medida que você vai entendendo o mundo, a vida, e vai entendendo a história dele, de onde veio, vê que meu pai era uma pessoa movida a desafios. E ele aceitou esses desafios”, continua a filha.
“Ele era amigo. Muito presente nas coisas importantes. Aprendi muito com meu pai. Ele não facilitava as coisas, me fazia ir buscar e eu só posso me sentir privilegiada por ele ter me ensinado a viver assim”, agradece Adyel, que volta no tempo para lembrar os dias em que ela acompanha Adhemar nos treinos.
“Eu cheguei a vê-lo treinando. Era dedicado. Nasci no Rio, na época em que ele foi treinar no Vasco. A gente morava perto do Maracanã. Eu era pequena, mas lembro de correr na pista com ele quando ele fazia aquecimento. Quando eu chegava na metade, cortava caminho para alcançá-lo do outro lado. Tenho boas lembranças desse tempo”, narra Adyel, que acredita que Adhemar ficaria feliz por ver os Jogos Olímpicos realizados no Brasil.
“Meu pai hoje estaria com 84 anos. Quando você entra nessa fase, entra em um período de contemplação. Acho que ele estaria contemplando isso tudo. Penso que ele iria acompanhar tudo com alegria por poder encontrar tantos amigos que ele fez lá fora e ver os atletas de outras gerações, dessa vez em casa”.
Exemplo sem cobrança
Hoje com 31 anos, Diego, filho de Adyel e neto de Adhemar, teve no bicampeão olímpico um verdadeiro pai. Ao contrário de muitas estrelas que sonham ver seus descendentes levando adiante o legado no esporte com o mesmo brilho, Adhemar foi sábio o suficiente para jamais cobrar nada de Diego.
“Vivi com meu avô até meus 16 anos e ele nunca me forçou a seguir uma carreira esportiva”, conta. “Quando houve a primeira São Silvestrinha em São Paulo (1993), eu disse que queria participar. Ele me inscreveu e o pessoal da TV Cultura descobriu isso e resolveu fazer matéria comigo”, lembra. “Eu não tinha treinado, ele não havia me treinado e nem nada, e aí eu cheguei em penúltimo. Ficou uma coisa meio feia porque criou-se uma expectativa pelo fato de eu ser neto dele. Mas aí eu cheguei em penúltimo e já vi que não era a minha praia. E me lembro que meu avô só deu risada. Acho que até por isso ele nunca fez tanta questão que eu treinasse. Ele sabia que a expectativa de todo mundo seria grande por eu ser neto dele”.
Quando menino, Diego via seu avô com outros olhos. Para ele, Adhemar era apenas um grande avô e super companheiro. Nada diferente de outros avôs. “Me lembro que quando eu era criança todo mundo vinha me falar sobre meu avô. Mas eu, como qualquer criança, não tinha noção do quão grandiosa foi a vida dele. Para mim ele era normal. Não tinha nada demais”, prossegue o neto.
Então, veio o 12 de janeiro de 2001, data da morte de Adhemar. Foi só quando se viu sem o avô que Diego, finalmente, percebeu a dimensão de Adhemar. “Foi aí que comecei a entender o quão difícil era ser negro no Brasil. O quão era difícil conquistar duas medalhas de ouro olímpicas e fazer disso um caminho para estudar, se formar em várias áreas e ser um cidadão que é exemplo”, diz o neto. “Acredito que tudo o que uma pessoa faz na vida ela tem que pensar que pode deixar um exemplo e que pode servir de inspiração para outros. Foi isso o que aprendi com ele”, diz Diogo.
Voltando ao Midas, lá em Roma, e à Manhã de Carnaval, vale uma última referência dos toques especiais da vida de Adhemar, até para ele sair de cena. “Ele morreu no mesmo dia em que morreu Luiz Bonfá”, ressalta Benê Turco, em referência ao autor da música. “Na época, me lembro que só a TV Cultura noticiou as duas mortes. Mas não fizeram essa relação entre o Adhemar e o Luiz Bonfá”.
Luiz Roberto Magalhães – brasil2016.gov.br