Atletismo
Brasil de Ouro
Torben Grael e Marcelo Ferreira: triunfo em Atlanta, glória em Atenas
A última regata da classe Star dos Jogos olímpicos de 1996, disputada em 29 de julho, em Savannah – cidade a 400 quilômetros de Atlanta e que sediava as provas de vela daquela Olimpíada –, já estava em curso havia quase meia hora quando o carioca Marcelo Ferreira, ao contornar a primeira boia do percurso, notou uma placa de sinalização que mudaria totalmente a sua vida e a de seu parceiro, o paulista Torben Grael, ambos a bordo do barco Vida Bandida.
O que a placa mostrava era que a embarcação dos australianos Colin Beashel e David Giles havia queimado a largada e que por isso a dupla rival tinha sido desclassificada. Ao perceber isso, foi impossível para Marcelo e Torben não serem tomados por uma sensação de júbilo. Afinal, com aquela informação, os dois – antes mesmo de cruzarem a linha de chegada, longe dos olhos do público e sem qualquer festa ou aplausos – tinham se tornado campeões olímpicos.
“Não caiu a ficha na hora não”, lembra Marcelo. “Esse troço só quem passa é que entende como funciona. Essa é a realidade. Até quando a gente cruzou a linha, a gente estava comemorando, mas é uma sensação tão indescritível que você não realiza. Você está lá no meio do oceano. É diferente de quando você está dentro de uma arena fechada ou em uma pista de atletismo, com o público em volta. Não tinha nem spectator boat (barco que é usado para levar o público para acompanhar a regata de perto). Foi diferente de outros eventos. É o ouro que ninguém viu, vamos dizer assim”, resume Marcelo.
As lembranças daquela tarde, passados 20 anos, também seguem frescas na memória de Torben. “Na realidade, a gente começou a fazer uma marcação forte nele (Colin Beashel ) na largada dessa última regata, porque a gente queria ficar sempre junto dele. Como a gente tinha vantagem e ele tinha que ganhar, ele, pressionado, acabou queimando a largada”, recorda o velejador. “A gente já vinha na frente do Colin e quando chegamos lá perto da boia, quando o Marcelo viu a placa, realmente foi aquela comemoração. A gente estava bem ciente de que tinha dado certo”, prossegue Torben.
A medalha de ouro nos Jogos de Atlanta 1996 representou uma espécie de redenção para Torben e Marcelo em relação à experiência que a dupla vivera nas Olimpíadas de Barcelona, 1992. Na Espanha, eles competiram juntos pela primeira vez nos Jogos e terminaram na 11ª posição.
Para Torben, em especial, o significado da conquista em Savannah ia além. Quando desembarcou na Geórgia para os Jogos de 1996, ele já tinha no currículo dois pódios olímpicos. A primeira medalha, de prata, foi arrebatada em Los Angeles 1984, na classe Soling (ao lado de Daniel Adler e Ronaldo Senfft). Quatro anos depois, em 1988, em Seul, veio o bronze na classe Star, ao lado de Nelson Falcão.
Assim, aos 36 anos – seis a mais do que Marcelo –, o experiente Torben Grael finalmente havia chegado ao sonhado título olímpico. “Foi uma sensação maravilhosa, aquela sensação de dever cumprindo, de você ter chegado ao topo da pirâmide. Realmente foi uma curtição o restante da regata”, descreve Torben.
Campanha favorável
Ao contrário da campanha de Barcelona, quando os dois terminaram a primeira regata dos Jogos Olímpicos de 1992 em nono lugar, em Savannah os ventos sopraram a favor desde o início. A estreia nos Jogos de 1996 se deu em 22 de julho e a dupla começou vencendo a primeira regata. No dia seguinte, quando foram disputadas duas provas, eles conquistaram um sexto e um segundo lugares. Em 24 de julho, Torben e Marcelo terminaram em sétimo, mas se recuperaram um dia depois, quando cruzaram a linha de chegada em primeiro. No dia 26, quando novamente duas disputas, e os brasileiros chegaram em quarto e em nono. Depois disso, um segundo lugar no dia 27 e um sexto no dia 28 deixaram os dois em posição confortável para a última prova, no dia 29.
“Atlanta foi um lugar bom para a gente porque as condições eram parecidas com o que a gente estava acostumado no Rio de Janeiro”, lembra Torben. “Era vento térmico, calor, umidade, sem vento de manhã, vento só à tarde, com aqueles temporais de verão de final de tarde... Enfim, era uma série de coisas com as quais a gente ficou super à vontade. Muita gente ficou achando ruim aquelas condições, mas para nós era como a gente velejava sempre, então nos adaptamos bem lá”, continua.
“A gente também foi fazer o evento-teste, fomos treinar duas vezes antes dos Jogos, e isso tudo ajudou muito. A gente conhecia bem o lugar. Estávamos com um barco que desenvolvemos para competir lá. Testamos bastante os equipamentos antes e isso tudo ajudou. Nós estávamos rápidos para a competição. Desenvolvemos um cockpit bem fechado para correr lá e em Savannah tinha bastante onda. Então o barco drenava mais rápido, ficava com menos água dentro, e isso ajudou. Mas a realidade foi que a gente velejou super bem”, prossegue Torben. Ele ressalta ainda que, além de ele e Marcelo terem ido bem em Savannah, outro fator contribuiu para a conquista do ouro em 1996.
“Nós disputamos muito com o Colin desde o começo a ponteira da competição. A gente alternava bastante os resultados com ele, mas quando ele ia bem a gente nunca ia mal. E quando a gente ia bem, às vezes ele dava uma escorregadinha. Aí, quando foi chegando o fim do campeonato, o que aconteceu foi que como a gente conseguiu abrir uma distanciazinha de pontos e no final ele tinha que ganhar a regata para ficar com o ouro”, detalha.
Superstição e camisa furada
Nas lembranças de Torben Grael, talvez por ser mais experiente, talvez por ter se sentido tranquilo por tudo o que haviam feito nas nove regatas anteriores, a noite do dia 28 de julho, véspera da decisão da classe Star nos Jogos de 1996, não foi angustiante.
“Nós não ficamos muito nervosos porque a gente vinha dos Jogos em Barcelona, onde nós tivemos um péssimo resultado, e (em Savannah) nós já estávamos matematicamente com a medalha de prata garantida. A gente já estava com aquela sensação de que já tinha conquistado um excelente resultado”, afirma.
Para Marcelo Ferreira, entretanto, aquela noite foi tudo menos calma. “Passava pela minha cabeça que a gente poderia ser campeão olímpico, sim. Mas não foi muito fácil tentar dormir nessa noite não. Na verdade, eu até saí como tio do Torben, o Erik, nosso técnico, para tomar uma cervejinha com ele. Porque não adiantava ficar deitado fritando na cama, né? Eu dormi mal na noite anterior à competição. É aquela situação de estar indo para a última prova sabendo que tem chances reais (de conquistar o ouro)”, recorda Marcelo.
Em seguida, Marcelo narra como foram as horas antes do início da regata que renderia a ele e a Torben a consagração nos Jogos de Atlanta:
“A regata era tipo uma hora da tarde. Você acorda como sempre naquele horário do café da manhã, umas 8 horas, para depois sair no ônibus e ir para o canal onde a gente pegava o ferry para ir para a marina”, conta. E cabe aqui uma observação em relação ao local de competição da vela em Savannah: ao contrário de muitas regatas onde o público em terra ainda consegue ver os barcos, mesmo que à distância, a marina olímpica de 1996 era flutuante, ficava a mais de uma hora de distância de barco mar adentro, muito longe dos olhares de qualquer torcedor.
“Aí chega lá e tem aquele velho ritual, porque a gente não muda nada, a superstição impera”, prossegue Marcelo. “Nem roupa a gente trocava. A camisa, se você olhar uma foto que eu tenho que saiu no jornal, tem um buraco embaixo da axila que continua até hoje. Foi uma camisa que eu usei durante todo o evento. A minha roupa de velejar, que era de feltro, foi feita aqui na confecção da minha esposa por uma costureira. Todos esses detalhes foram ficando mais fortes durante todos os dias do evento. Você não troca nada. Eu acho que isso é com todo mundo. E o Torben é pior do que eu. Ele não vai falar, mas é bem pior. Aquele cara com superstição é brincadeira...”, entrega.
O resto é história. Torben e Marcelo trataram de colocar em prática a estratégia de pressionar o australiano Colin Beashel e seu parceiro desde o início e a pressão surtiu o efeito desejado.
“Não estava nada ganho, mas a coisa estava muito na mão para a gente. E a tática de pressioná-lo na largada acabou funcionando”, lembra Torben. “Acho que foram três largadas. As duas primeiras foram invalidadas por muitos barcos partindo fora da linha. Mas nessas duas a gente saiu bem melhor do que ele, pressionando. Nessa terceira, ele viu que se continuasse daquele jeito não ia ter chances de ganhar a regata e acabou acelerando cedo. Ele saiu melhor do que nas outras duas, mas acabou queimando a largada. Mesmo assim a gente saiu bem também. Chegamos à bóia de contravento à frente dele. E foi lá na bóia de contravento que a gente viu pela primeira vez a placa com a sinalização da Austrália como barco escapado. Aí o resto da regata foi uma curtição só, porque a gente já sabia que tinha conquistado aquele sonho grande”, detalha Torben.
Enfim a celebração em terra
O que se seguiu ao fim da regata naquele 29 de julho de 1996, na qual Torben e Marcelo terminaram em terceiro lugar, foi uma sequência de eventos que marcaram profundamente os dois.
A comemoração para valer só se deu em solo firme em Savannah. Mas, antes, ainda houve tempo para uma breve celebração em alto mar. “Demorou mais de uma hora e meia até voltar para a terra. Já atendemos a imprensa lá no próprio flutuante e já teve a famosa champanhe lá mesmo no flutuante”, conta Marcelo.
“Quando chegamos, todo mundo estava dando os parabéns”, lembra Torben. “Obviamente, a gente tem sempre que chegar em terra e ver o resultado, ver se não tem nenhum protesto, aquela coisa toda de regata. A gente sabia que tinha feito uma regata bem limpa, que o Colin tinha queimado e que ele automaticamente precisava ganhar a regata e então estava bem decidida a coisa”, continua.
O premiação da classe Star dos Jogos Olímpicos de Atlanta só foi realizada no dia seguinte. E até a hora de subir ao pódio Torben e Marcelo comemoram em grande estilo. “Foi um barato porque tinha um bar/restaurante que a gente ia, chamado Spunks. A gente ia para tomar uma cervejinha e dar aquela relaxada e o dono do bar estava lá ensandecido e gritando (após saber que os brasileiros eram campeões olímpicos) e foi muito legal nesse aspecto. Era um lugar pequeno e foi bacana porque tudo acontecia naquela beirada de rio, naquelas arquibancadas para fazer a premiação. Foi um momento único, né? Eu nem lembro que horas a gente voltou pra casa. Nós fomos lá para esse tal de Spunks, botamos o cartão de crédito e fomos embora (celebrar)...”, conta Marcelo.
“Nesse aspecto foi melhor do que Atenas, pois em Atenas me pegaram para o antidoping e tive que fazer o teste de urina e de sangue. Mas aí o pessoal do sangue não estava lá e eu só podia fazer no dia seguinte. E aí o pessoal do COB não me deixou comemorar, porque eu tinha que fazer o antidoping no dia seguinte. Aí eu fiquei chupando dedo. Mas em Atlanta comemoramos com uma cervejinha, né?”, emenda Torben Grael, já se referindo ao que viveu na Grécia, oito anos depois da conquista em Savannah.
Emoção no pódio
No dia 30 de julho de 1996, Torben Grael e Marcelo Ferreira receberam a terceira medalha olímpica de ouro do Brasil na vela, repetindo os feitos que Lars Bjorkstrom e Alex Welter, na classe Tornado; e que Marcos Soares e Eduardo Penido, na classe 470, haviam protagonizado nos Jogos Olímpicos de Moscou 1980.
“Para quem faz qualquer esporte olímpico, você ir para os Jogos é uma coisa fantástica, é uma coisa que poucas pessoas têm a oportunidade. Você ir bem, fazer medalha, é uma coisa que menos pessoas no mundo conseguem, pouquíssimas pessoas conseguem. Você já foi mais longe. E quando você ganha a medalha de ouro realmente a satisfação é enorme. Você ir ao pódio, ver sua bandeira subindo, ouvir o Hino Nacional tocando... É uma sensação muito difícil de descrever, mas é maravilhosa. Mas eu não me lembro de ter chorado”, diz Torben Grael.
“Passa um filme, né? Primeiro porque a gente foi para essa Olimpíada com aquele gosto amargo de Barcelona, que foi o maior aprendizado que eu tive dentro do esporte”, ressalta Marcelo. Para ele, apesar de toda a emoção vivida no pódio nos Estados Unidos, foi somente no retorno ao Brasil que ambos finalmente perceberam a dimensão do que eles haviam conquistado em Savannah.
“A verdade é que demora muito até você realizar o que foi feito. Quando cheguei ao aeroporto (no Rio de Janeiro) foi que eu achei que uma coisa fenomenal. Tinha uma galera no aeroporto. Era uma coisa que a gente da vela nunca tinha visto. A gente nunca teve contato com o publico e com essas coisas. Ali eu falei: ‘Pô, a coisa foi grande mesmo’. Porque a gente fora do Brasil não sabia exatamente o que estava se passando aqui. Aí, quando eu vi o carro de bombeiro esperando e nós viemos lá do Rio até aqui (em Niterói) em cima do carro de bombeiro, isso foi um troço que me marcou muito”, lembra Marcelo.
Perda do patrocínio e ganho na America’s Cup
Em geral, uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos costuma ser um divisor de águas na carreira de qualquer atleta. As portas, após uma conquista dessa magnitude, tendem a se abrir e o caminho a partir dali normalmente é mais tranqüilo em termos de apoio para a preparação visando ao ciclo olímpico seguinte. Mas, para a surpresa de Marcelo Ferreira e de Torben Grael, não foi isso que aconteceu depois que toda a celebração em torno do triunfo nos Jogos de Atlanta 1996 se foi.
“Como atleta, depois que passou essa festa pela medalha, foi uma frustração muito grande e isso eu não posso deixar de falar”, desabafa Marcelo Ferreira. “O que aconteceu, por incrível que pareça, foi que quando acabou a Olimpíada a gente perdeu o patrocínio. O ano de 1997 foi um terror em termos de apoio ao esporte e de incentivo, seja da Confederação, do Comitê Olímpico, de tudo. O nosso prêmio por ter tirado a medalha de ouro foi um ano seguinte muito ruim em termos de apoio. Eu acabei que em 1997 corri o Campeonato Mundial de Star com um alemão nos Estados Unidos e fui campeão mundial com ele”, prossegue.
Já para Torben Grael, em particular, se a conquista do ouro em 1996 não rendeu apoio em seu país, ela serviu para lhe abrir as portas para uma nova fase de sua carreira. “Em termos de Brasil, você se tornar campeão olímpico é um degrau a mais, mas não houve grandes mudanças. Eu acho que uma mudança grande foi que essa vitória em Atlanta foi logo antes da Prada decidir fazer a America's Cup”, conta o velejador, referindo-se à mais prestigiada competição de vela do iatismo mundial e que detém a honra de ser o troféu mais antigo em disputa no planeta entre todas as modalidades do esporte. A primeira taça foi disputada em 1851, 45 anos antes da primeira edição dos Jogos Olímpicos modernos, realizada em Atenas, em 1896.
“A pessoa que foi convidada para ser o comandante da equipe Prada foi o De Angelis (o italiano Francesco de Angelis), que foi com quem eu comecei a correr de Oceano na Itália. Obviamente, como a gente tinha uma parceria muito forte, quando o chamaram, me chamaram também, inclusive pelo resultado de Atlanta com a medalha de ouro. Então acho que a conquista da medalha de ouro foi um diferencial grande”, prossegue Torben.
Os compromissos de Torben Grael com a America’s Cup e seu envolvimento com a equipe Prada renderam, anos depois, um patrocínio para ele e Marcelo na preparação da dupla na classe Star visando aos Jogos de Sydney 2000.
“Nós fizemos uma excelente campanha na America’s Cup. Ganhamos a Louis Vuitton Cup, que é uma coisa muito importante, e aí fizemos a final. Acabamos perdendo a final para o defensor, o neozelandês (o barco que derrotou a equipe de Torben era comandado pelo lendário velejador Peter Blake)”.
“Ficamos na luta para retomar a nossa campanha para Sydney, procurando apoio, até que veio a Prada, que chegou em 1998. E aí ficamos com a Prada e a Petrobras. Mas a Prada foi graças ao Torben, que estava velejando na equipe”, destaca Marcelo. “Aí mudou o panorama financeiro para a gente para poder fazer tudo com calma. Só que aí a gente tinha mais recurso para fazer as coisas e menos tempo para a Star, porque tinha o envolvimento do Torben com a America’s Cup. Realmente tínhamos pouquíssimo tempo para treinar como dupla. A gente fez um ano de 1998 horroroso, com vontade de desistir, porque os resultados não vinham. A gente praticamente não tinha treinamento. A gente se encontrava e falava: ‘E aí? Qual é o campeonato?’ E ia lá para o campeonato e corria”, prossegue Marcelo.
“Então foi um ano terrível, desanimador, e em 1999 também não foi muito diferente. Em 1998, para ser sincero, que foi o ano do acidente do Lars, a gente até teve um Mundial fantástico na Eslovênia. A gente acabou o Mundial em segundo, o que valeu a classificação para Sydney (Jogos Olímpicos de 2000) para o país. Acabamos ganhando a eliminatória no Brasil também e fomos para Sydney com um barco novo e diferente. Para nossa surpresa, quando nós chegamos a Sydney nós acabamos conseguindo nos dedicar aos treinos e a gente estava voando baixo”, continua Marcelo.
Sydney 2000: o ouro caiu na água
Os Jogos Olímpicos de 2000, para o Brasil, ficará para sempre marcado como as Olimpíadas do “quase”. Várias de nossas estrelas consideradas favoritas sofreram reveses na hora H e, com isso, a delegação retornou para casa sem nenhuma medalha de ouro na bagagem pela primeira vez desde os Jogos de Montreal 1976.
Com Torben Grael e Marcelo Ferreira não foi diferente. Apesar de eles não terem feito uma preparação considerada ideal, a dupla por muito pouco não conquistou a segunda medalha dourada da parceria.
“A gente estava complemente fora de ritmo e de tempo para os Jogos e fizemos vários erros que a gente normalmente não teria feito se estivéssemos mais bem treinados”, lembra Torben Grael. “Mas ainda assim nós fomos para a última regata liderando, mas não demos muita sorte. A gente estava cinco pontos à frente do Mark Reynolds (norte-americano) e do barco dos ingleses. A gente acabou botando o americano fora da linha e ficamos com o lado bom da raia, só que nesse processo a gente acabou queimando a largada também e não conseguiu se dar conta disso. Normalmente, só do americano ter ido para o lado ruim da raia, a gente já teria ganho dele. Mas acabou que naquela regata em particular vagou o outro lado e então saiu tudo errado. A gente queimou e ele acabou ganhando a regata”, prossegue Torben. Torben e Marcelo acabaram no pódio, mas para receber a medalha de bronze, algo que eles não esperavam. “Nunca seria tão fácil (conquistar o ouro)”, resume Marcelo. “Mas só que mesmo com a largada escapada, e isso eu tenho que falar porque é a verdade, a gente velejou tão mal essa última regata que mesmo assim a gente não ganharia pela matemática. A gente cruzou a linha. Ninguém retirou a gente da regata. Nós cruzamos a linha e só depois soubemos que a gente tinha escapado. Mas com esse resultado de qualquer jeito a gente ficaria com o bronze, que era o pior que a gente poderia fazer no último dia. Antes de largar a gente já tinha o bronze. A gente fez o pior que a gente podia fazer”, reconhece.
“Sydney ficou entalado na gente. Primeiro, ficou entalado porque quando eu cheguei em terra, me lembro como se fosse hoje, teve algum cara lá de imprensa, um brasileiro, que fez uma pergunta tão ridícula que eu dei um coice. Eu falei: ‘Ô babaca, filma lá a festa do norueguês que tirou terceiro no Soling’. Os caras estavam comemorando pra caramba o bronze”. Nós fomos lá, lideramos a Olimpíada quase toda, tiramos um bronze e aí o cara vem dizer que foi um fracasso. É brincadeira isso!. O brasileiro tem essa mania. Se não for o primeiro não serve. Só que no Brasil eu falo o seguinte: ‘Só em ser atleta o cara já é campeão, porque só a gente sabe das dificuldades’’, continua Marcelo.
Seja como for, o bronze em Sydney, por mais que não tenha sido o que os dois esperavam diante das circunstâncias do último dia de prova na Oceania, foi determinante para algo incrível que viria quatro anos depois. E hoje, ao olhar para trás, Marcelo consegue curtir em paz tudo o que ele e Torben viveram nos Jogos de 2000.
“A Olimpíada de Sydney, como Olimpíada, para mim foi maravilhosa. Era uma baía linda, um transporte maravilhoso, tudo funcionando, muito aprazível, um negócio muito bacana de você estar ali velejando naquele evento. Velejar naquela baía foi fantástico para a gente. Nós ganhamos duas regatas em um dia, e o resultado, para gente, estava acima das expectativas para as Olimpíadas. Foi o que o Torben falou: ‘Essa (medalha de ouro) bateu no convés e caiu na água’. Barcelona não existiu, deu tudo errado, então tudo bem. Ali não... A gente não contava que fosse chegar lá e arrebentar. Mas quando a gente viu que estava andando muito, que estava tudo bonito, ali realmente a medalha bateu no convés e caiu na água. E aí a gente fez um combinado de que teríamos que fazer mais uma campanha. Ali a gente já combinou. Aquela foi a que culminou em Atenas”, prossegue Marcelo.
Um lugar no Olimpo
No ciclo para os Jogos de Atenas 2004, Torben Grael mais uma vez se viu diante do desafio da America’s Cup. Mas, dessa vez, as coisas saíram diferente do caminho percorrido para os Jogos de Sydney.
“Novamente eu fiz America’s Cup. A diferença é que a Copa (a decisão do título) foi em 2003. Então, como a gente não foi para a final em 2003, a minha participação acabou no final de 2002. E a Olimpíada foi em 2004. Então deu bastante tempo para a gente se preparar bem para os Jogos. Se por um lado a America’s Cup, com a Prada, teve esse impacto, dificultando os treinamentos para a gente, por outro lado eles foram nossos grandes patrocinadores, tanto para Sydney quanto para Atenas, possibilitando fazer uma preparação, principalmente para Atenas, da melhor forma possível. Então são os dois lados da moeda”, pondera Torben.
Vieram os Jogos na Grécia. E no dia 26 de agosto de 2004, após um quarto lugar na décima e penúltima regata da classe Star das Olimpíadas de Atenas, Torben Grael e Marcelo Ferreira conquistaram, por antecipação, a segunda medalha de ouro olímpica de suas vidas.
A campanha dourada teve início no dia 21 de agosto, com um quinto lugar e um quarto lugares. No dia seguinte, vieram duas vitórias, que foram seguidas por um segundo lugar no dia 23. Um dia depois, a dupla cruzou a linha de chegada em quinto e voltou a ficar em segundo no dia 25, quando ainda disputou outra prova e terminou em sétimo. Então, no dia 26, após um 11º lugar, veio o histórico quarto lugar na segunda regata, o que selou a conquista do ouro. Eles nem precisaram velejar a 11ª e última prova das Olimpíadas.
“Para Atenas a gente não queria saber de Campeonato Mundial, de Campeonato Europeu, nada disso... A gente queria trabalhar para desenvolver só para Atenas. E esse foi um grande trabalho mesmo. A gente contou com a ajuda do Alan Adler (experiente velejador brasileiro que disputou as Olimpíadas de 1984, em Los Angeles; de 1988, em Seul; e de 1992, em Barcelona), junto com o Roni (Ronald Seifert), que foi proeiro do Pascolato, que é um cara muito bacana. O Alan e o Roni foram com a gente para a Itália, para o Lago de Como, testamos vela, testamos mastro, e fizemos um trabalho de excelência junto com uma tripulação espanhola, que tinha o Roberto Bermudez (velejador espanhol), que fez a volta ao mundo com a gente no Brasil 1 (nome do barco em que Torben, Marcelo, Bermudez e outros sete tripulantes competiram na edição 2005/2006 da Volvo Ocean Race) depois”, recorda Marcelo.
“A gente ficou rápido demais em vento fraco, ficamos rápidos em vento forte, tivemos um barco novo, e nós levamos dois barcos para a Olimpíada de Atenas. O Alan estava lá velejando com a gente de sparring. E o desgraçado era o mais rápido da Olimpíada. O nosso sparring era o cara!”, diz Marcelo às gargalhadas. “Foi muito divertido porque logo no segundo dia de treino a nossa equipe foi protestada para tirar o barco do Alan do evento. Tivemos que tirar o barco de dentro da marina, porque só podia ficar um barco, e acabou que quando a gente ficava do lado dos caras e a gente estava muito rápido. Estava dando tudo certo. Realmente Atenas para a gente foi tudo perfeito. Não tinha uma coisa que você podia falar que não estava funcionando para a gente”, prossegue o bicampeão, que ainda hoje se diverte com uma história que ele presenciou logo no início da competição.
“No primeiro dia de regata da Olimpíada, saímos da água e a gente estava em segundo no geral, se não me engano, ou terceiro, e o americano Paul Cayard estava liderando a Olimpíada. Mas o cara sempre foi meio metidão, né? Nós saímos da marina e a gente descobriu um posto de gasolina que tinha bem pertinho da marina e que tinha uma cervejinha Heineken, aquela pra relaxar depois de um dia longo, e aí nós fomos para lá para tomar uma cervejinha. Aí estava o Alexandre Haddad (jornalista da ESPN) lá fumando o charuto dele e passou o americano vendo a gente tomando uma cervejinha. O cara olhou pra gente e nem cumprimentou, com uma cara de desprezo danada. A brasileirada estava toda nesse posto de gasolina e começou a zuar. E o Alexandre me pega aquele charuto e me enterra o charuto, fazendo lá as mandingas dele. Depois desse dia o cara (Paul Cayard ) sumiu da Olimpíada”, recorda Marcelo.
No clube dos bicampeões
Em 26 de agosto de 2004, Torben Grael e Marcelo Ferreira entraram para um dos grupos mais seletos que o Brasil possui: o dos bicampeões olímpicos, uma façanha que apenas 12 atletas até hoje conseguiram no país.
Um dia antes, no dia 25, Robert Scheidt havia conquistado sua segunda medalha de ouro nos Jogos Olímpicos na classe Laser e, com isso, tinha se juntado a Adhemar Ferreira da Silva, até então o único bicampeão olímpico do Brasil. Agora, com os feitos de Torben e Marcelo, eram quatro bicampeões. E em Atenas os jogadores de vôlei Maurício e Giovane ampliariam esse número para seis. Esses são, até hoje, os únicos homens com duas medalhas douradas olímpicas no currículo. Seis mulheres, todas do vôlei, completam o clube dos bicampeões olímpicos do Brasil: Paula Pequeno, Sheilla, Jaqueline, Fabiana Oliveira (Fabi), Fabiana Claudino e Thaisa.
“Em Atenas foi muito especial. Primeiro porque é um lugar com muito simbolismo. É o berço do olimpismo moderno e tem aquela coisa toda... A gente teve, eu e Marcelo, a oportunidade de levar a tocha de Atenas, porque a tocha passou aqui no Rio de Janeiro antes. E depois eu levei bandeira no desfile de abertura e acabamos conseguindo o bicampeonato. Então foi uma Olimpíada muito marcante. Até Atenas só tinha o Adhemar (bicampeão olímpico). Isso foi uma coisa muito bacana, porque o Adhemar era aquele farol, aquela luz para a gente, dizendo que era possível. Então foi fantástico a gente conseguir chegar lá. E teve uma coisa curiosa em Atenas. As casas lá não tinham número na Vila. E a gente ficou em uma casa que o nome era Centauros. E dessa casa vieram quatro medalhas de ouro. Foram nós, o Robert Scheidt, o vôlei de quadra e o vôlei de praia (com Emanuel e Ricardo). Todo mundo ficou lá. Era um lugar especial”, conta Torben.
Marcelo Ferreira vai na mesma linha: “Você encerrar seu ciclo olímpico em Atenas, onde tudo começou, eu não precisava mais de nada. Para mim foi a melhor Olimpíada da minha vida. Foi o meu melhor resultado, foi a que mais me tocou, foi a que eu mais curti. Se você me perguntar de Savannah (Jogos de Atlanta 1996), Savannah foi fantástica. Mas Atenas para mim é o ápice, é a glória, não tem mais o que falar. A gente passeou naquilo tudo antes da regata eu e o Torben. Fomos visitar aqueles monumentos... Foi uma harmonia com Atenas”, emenda Marcelo. A tocha dos Jogos de 2004 até hoje decora a sala do velejador, junto com outros troféus, como mais uma lembrança especial de sua carreira.
Os Jogos no quintal de casa
A entrevista que serviu de base para essa matéria estava perto de terminar quando Marcelo Ferreira respondeu o que é ser um bicampeão olímpico.
“É aquela história da realização. Você dedica uma vida a um trabalho, que é o meu caso e o do Torben, que passamos a vida toda dentro de um esporte. Em todo o esporte o sofrimento é o mesmo. É sair de casa, tem as viagens, tem aquela coisa de abdicar das festas familiares e eu sou um cara muito família e então isso tudo soma no final. Você se dedicar tanto e conseguir algo assim é uma coisa muito forte. Ser campeão olímpico é ter seu trabalho reconhecido, sua recompensa, é chegar ao topo em um evento de uma magnitude que você não consegue mensurar. É o que todo atleta procura. A maioria procura ir para uma Olimpíada. Então você imagina eu, que tive a oportunidade e a chance e a alegria de poder ter ganho duas e ainda ter tido um bronze. É muito difícil descrever em palavras o que é você ser um bicampeão olímpico”, diz Marcelo.
A Torben Grael foi feita a mesma pergunta. E após refletir por vários segundos, ele encontrou uma explicação que vai além das medalhas.
“Cara, acho que primeiro é um orgulho enorme. A gente que optou por dedicar a vida da gente ao esporte, conseguir chegar aonde nós chegamos eu acho que é fantástico. Eu tenho uma amizade enorme com todos os meus tripulantes e ex-tripulantes e isso também é muito bacana, porque não foi só uma coisa do momento. Foi uma coisa muito além do treinamento, da participação, da competição. Eu tenho uma amizade enorme com todos eles e é difícil expressar o que isso significa. Acho que significa tudo pra gente”.
A partir do dia 5 de agosto, Torben Grael e Marcelo Ferreira viverão mais uma emoção ligada aos Jogos Olímpicos. Ambos moradores de Niterói, eles poderão acompanhar os Jogos no quintal de suas casas, algo impensável para qualquer um deles quando ambos, na Grécia, tornaram-se bicampeões olímpicos, em 2004.
Para Marcelo, a crise pela qual passa o país torna ainda mais importante que as Olimpíadas no Brasil sejam bem-sucedidas. “Eu acho fantástico uma Olimpíada no Brasil, mas só que temos tudo isso aí que todos estão acompanhando (na política e na economia). Eu espero de coração que essa Olimpíada seja um grande sucesso e que dê tudo certo. Porque a nossa realidade está muito ruim”, pondera.
“Eu acho que é uma oportunidade fantástica para quem está tendo o privilégio de poder disputar os Jogos Olímpicos em casa”, ressalta Torben. “E é muito bacana eu ter ambos os filhos entre essas pessoas que vão ter esse privilégio”, continua, referindo-se a Martina Grael (que competirá na classe 49erFX, ao lado de Kahena Kunze) e a Marco Grael (que velejará na clase 49er, ao lado de Gabriel Borges).
“A gente ainda tem bastante coisa para fazer para estar tudo pronto para os Jogos, mas eu espero que no final vai dar tudo certo. A gente atravessa momentos difíceis na política e na economia e eu espero que isso também se aprume deixando uma boa mensagem para o futuro. Então, acho que os Jogos vão chegar em um momento legal para o Brasil para botar o esporte mais em evidência, para o país ver coisas boas. Vai ser um período muito bacana da vida da gente”, encerra o velejador.
Luiz Roberto Magalhães – brasil2016.gov.br