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Judô

21/08/2019 00h48

Mundial de Judô 2019

Nutrição, uma das engrenagens essenciais para a seleção de judô no Mundial de Tóquio

Cardápios adaptados, reposição de nutrientes, controle de peso e atenção às substâncias proibidas integram o pacote para garantir a melhor performance aos atletas no torneio

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Às vésperas dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, uma menina de pouco mais de 20 anos chegou cheia de ideias e conceitos estranhos para a vida prática de atletas com ampla experiência e medalhas em mundiais, olimpíadas e torneios internacionais, como João Derly, Flávio Canto, Carlos Honorato, Edinanci Silva e Leandro Guilheiro. Recém-saída do curso de nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Roberta Oliveira de Albuquerque Lima olhava torto para capas, agasalhos e métodos usualmente adotados para perda rápida de peso em véspera de competições importantes.

"Foi um tempo difícil, mas pense: chega uma nutricionista recém-formada, novinha, sem vivência de judô, dizendo que eles não podiam desidratar, que não podiam adotar métodos de perder peso na véspera, que perderiam rendimento. Falar isso para quem fazia isso há tempos e tinha ótimos resultados. Eles praticamente só olhavam para mim", brinca Roberta.

Roberta em parceria com os atletas: cena frequente nos treinos da seleção brasileira. Foto: Roberto Castro/rededoesporte.gov.br

Quinze anos depois e com quatro ciclos olímpicos no currículo, o trabalho da área nutricional na seleção têm significado bem distinto. É visto como engrenagem essencial para que os judocas tenham condições de entrar nas competições com o melhor nível técnico, tático e físico. O cardápio mais correto, a reposição de líquidos e nutrientes, o controle permanente de peso e a atenção especial à composição de suplementos passaram a compor um "checklist" que os atletas de alto rendimento precisam cumprir com rigor para enfrentar os adversários nas melhores condições.

"Esse pode?", pergunta um judoca durante o treino no Ginásio Yuto, em Hamamatsu, no período de aclimatação antes do Mundial de Tóquio, no Japão. A dúvida sobre um isotônico com rótulo em japonês exemplifica os novos tempos. "Esse sim, porque não tem carboidrato", responde Roberta, que adquiriu até a habilidade de decifrar nos rótulos as composições de substâncias em outras línguas, até para evitar problemas com dopagem.

"Acho que desde o ciclo de 2008 o trabalho ganhou outro peso. Eu aprendi mais sobre o judô. Cheguei até a praticar a modalidade. E, com a renovação da equipe, os atletas chegavam e eu já estava lá. Aí era mais fácil perceber que tinham de seguir as regras. Hoje, com essa experiência acumulada, há uma relação de confiança mais sólida, até porque os atletas enxergam os resultados"

"Acho que desde o ciclo de 2008 o trabalho ganhou outro peso. Eu aprendi mais sobre o judô. Cheguei até a praticar. E, com a renovação da equipe, os atletas chegavam e eu já estava lá. Era mais fácil perceber que tinham de seguir as regras"
Roberta Lima

Dias antes de os primeiros judocas saírem da cidade a 250km da capital japonesa para a competição, Roberta Lima concedeu essa entrevista ao rededoesporte.gov.br. Confira os principais trechos.

Prioridades na reta final

Quando a gente chega aqui na véspera de um Mundial, a gente espera que as coisas estejam prontas. O desafio é manter o que a gente faz no Brasil, em relação à alimentação, ao processo de hidratação, ao uso de suplementação. Tentar manter. Só que a gente está numa cultura totalmente diferente da nossa. Um país em que o café da manhã tem peixe, que não é o que a gente costuma comer. Assim, tento trazer a culinária brasileira para cá, para que eles consigam se alimentar da forma que estão acostumados.

Parceria na cozinha

No ano passado estive aqui, no mesmo hotel em que a gente está. Trouxe um cardápio brasileiro para o chef. Vimos juntos o que dava para fazer. Eles são parceiros. Querem ajudar. Quando você pede uma coisa e não tem, eles viram o mundo para conseguir. Como a cidade tem muitos brasileiros, eles têm aqui, em mercados específicos, gêneros como feijão, farinha para fazer farofa, aipim para fazer cozido. Dentro do que tinham disponível e do que preciso, a gente chega a um cardápio. Hoje nossas refeições são como se a gente estivesse no Brasil. Temos arroz, feijão, frango, carne, macarrão, farofa. No café da manhã também fizemos adaptações. Pedi frutas frescas. Aqui há um costume de conservas, e para os atletas é ruim, porque é à base de açúcar. A gente já está em restrição de calorias por conta do peso. Então eles colocam frutas frescas, granola, mel, iogurte, queijo.

Adaptações necessárias

Aqui usam muita fritura. Tudo é empanado ou frito, com aquela camada de milanesa. Colocam muito porque é a tradição. Aí tem de interferir. Não pode ser empanado nem frito. Senão sai todo mundo 'rolando'. Usam também muita coisa doce nos temperos, o que a gente não gosta. Mas temos na comissão técnica e entre os atletas muitos que gostam da comida japonesa. Querem vir para cá e provar também. Por isso sempre peço, no almoço e no jantar, opções locais, como yakissoba, noodles, sashimi, sushi, uma coisa diferente deles, para que tenham a possibilidade de degustar.

O clima como rival

Aqui o que temos de mais diferente é que é muito quente e muito úmido no verão. Mesmo parado, a gente sua. Imagine eles, de quimono, uma vestimenta que já é quente, fazendo um treino intenso. Então a produção de suor é grande. A gente tem de aumentar a atenção com relação à reposição hídrica. É uma coisa que a gente tem trabalhado muito. Para isso, além de água, temos os isotônicos, com opção com carboidrato ou sem. Para os atletas que já estão em restrição de peso, usamos sem carboidrato, mas há reposição de sódio, de potássio. A gente usa algumas pastilhas de sal também, porque quando a gente sua não perde só líquidos, mas sódio, potássio, micronutrientes. Se a gente não faz isso eles desidratam e isso limita o treino. Provoca câimbras.

Calor úmido de Hamamatsu é um dos desafios para a comissão técnica. Foto: Roberto Castro/rededoesporte.gov.br
"A gente trabalha com uma restrição de peso máximo. Como regra geral, todos os atletas da seleção têm obrigação de não passarem de 5% do peso da categoria. Para um atleta de 60kg, 5% são três quilos. Ele não pode passar de 63kg ao longo da fase de treinos, no clube dele, na temporada. Já é uma obrigação"

Ensaio para 2020

Nossa operação aqui é como um evento-teste mesmo, mas com foco total. É um Mundial, uma grande e importante competição. Por isso vim um ano antes. Já conhecia o ginásio, sabia que seria quente. Já tinha isso na cabeça. Já tinha ido ao hotel. Sabíamos o tempo de lá para cá. Os horários das refeições. A ideia é ajustar tudo para a Olimpíada. Daqui a um ano isso vai estar rodando sozinho. 

O limite dos 5%

A gente trabalha com uma restrição de peso máximo. Como regra geral, todos os atletas da seleção têm obrigação de não passarem de 5% do peso da categoria. Para um atleta de 60kg, 5% são três quilos. Ele não pode passar de 63kg ao longo da fase de treinos, no clube dele, na temporada. Já é uma obrigação. As próprias nutricionistas dos clubes fazem parceria comigo. Fazem pesagens e me mandam. Assim, se tem algum atleta fora do limite, a gente consegue trabalhar. Temos também as concentrações em Pindamonhangaba (SP), em que eles ficam dentro do nosso ambiente. E a gente vai fazendo os ajustes.

Corpos diferentes, tratamento distinto

Obviamente há alguns com dificuldade de manter os 5%. Aí, individualmente traço objetivos separados. Alguns precisam ter um peso baixo, ou uma quantidade de massa muscular muito alta com percentual de gordura pequeno. Aí a margem é pequena. Em algumas situações até deixo um pouquinho mais. Mas sempre de forma orientada. Como acompanho muitos dos que estão aqui desde 2012, a gente já entende a fisiologia de cada um.

Perda de peso na véspera

Mesmo nos casos distintos, a gente mantém eles num peso que, depois, quando precisa perder para o dia da competição, é pouca coisa. Perder 5% da composição corporal é pouco. Esse tipo de perda não tem comprometimento na performance. Alguns estudos falam em 3% com impacto, mas quando temos tempo de recuperação, que é o nosso caso, isso se dilui. Nós pesamos na véspera e lutamos no dia seguinte. Assim, tenho 12 horas de intervalo para trabalhar a reidratação e reposição de glicogênio muscular.

Sem capa ou correria

Nos dias de lutas, há uma pesagem também. A organização sorteia quatro atletas por categoria. Eles têm de estar no máximo com 5% acima do peso da categoria. Por isso a gente ainda vê muito atleta de outras nacionalidades precisando botar agasalho, correr em volta do tatame, porque estão acima dos 5%. Provavelmente esse atleta perdeu uma quantidade de peso grande na véspera, para pesar. E aí ganhou peso rápido depois. E aí você imagina: no dia da competição, 40 minutos antes de competir, o atleta está preocupado porque não está no peso e pode ser cortado. Isso tem impacto negativo na performance. É exatamente o que a gente não quer.

Hidratação e reposição de nutrientes é rotina. Foto: Roberto Castro/rededoesporte.gov.br

História na seleção

Estou na seleção desde 2003. São 15 anos já. Quando entrei na nutrição já tinha certeza da nutrição esportiva e do alto rendimento. Não me via fazendo nenhuma outra especialidade da área, como nutrição de produção, de gerenciar cozinhas, ou em hospitais. Também não me via na área materno-infantil. Eu realmente me via fazendo algo na área esportiva mesmo.

"Você imagina: no dia da competição, 40 minutos antes de competir, o atleta está preocupado porque não está no peso e pode ser cortado. Isso tem impacto negativo na performance. É exatamente o que a gente não quer"

Formação e experiência militar

Quando me formei na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fui fazer um estágio de produção na Escola de Educação Física do Exército. Lá havia nutricionistas esportivos. Eu achava que era importante para mim. Fiquei lá mais de um ano. Dentro do quartel havia um coronel que era preparador físico da Federação de Judô do Rio de Janeiro. Na época não havia nutricionista lá. Eu não sabia nada de judô. Não conhecia o esporte. Era um desafio. Entrei na escolinha. Fiz judô para entender. Comecei a trabalhar com os atletas do Rio. Logo depois veio o convite da confederação, que também não tinha nutricionista.

Barreiras iniciais

Em 2004 foi muito difícil trabalhar, mas imagine: chega uma recém-formada, super novinha, que não sabia quase nada de judô. E já chega diante de uma equipe formada para a Olimpíada de 2004. Cheia de atletas de renome, como João Derly, Flavio Canto, Carlos Honorato, Leandro Guilheiro, Henrique Guimarães, Edinanci Silva. Já eram campeões. Aí chega lá uma menina de 20 anos e diz: 'Não, vocês não podem perder peso de qualquer jeito. Não podem usar capas, não podem só desidratar porque vai cair o rendimento. Eles só olhavam para mim porque sempre fizeram aquilo e dava certo. Por isso acho que o trabalho verdadeiro veio nos ciclos seguintes.

Ciclos olímpicos e confiança

Depois de 2004 foi diferente. Alguns atletas aposentaram, outros começaram a chegar e eu já estava lá. Não é uma pessoa chegando para mexer com a rotina. Não. Eu já estava lá e aí quem chegava passava a ser integrada às regras. De lá para cá fui para as Olimpíadas em 2008, 2012 e 2016. Tóquio agora é a quarta. E aí os atletas começam a ter confiança em você. Fica mais fácil de trabalhar.

"O que a gente faz é estar sempre proporcionando palestras de especialistas (como os da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem), do COB, dos nossos médicos. Palestras que explicam o que é o doping, o que acontece, por que não pode cada coisa"

Cuidados com a dopagem

O cuidado com a parte de suplementação é todo comigo. É necessário cuidado no que se prescreve. Geralmente prescrevo marcas de laboratórios de confiança, com chance mínima de contaminação. Não usamos nada manipulado, porque nem sempre as farmácias têm uma vigilância, um rigor para o tipo de especificidade que a gente tem. 

Especialista em rótulos

Acho que sei tudo de rótulos. Já leio até em japonês. O atleta me mostra e já sei o que tem. O que é proteína, carboidrato. Tem de estar sempre esperto. Até cafeína já foi considerada doping, e cafeína está em tudo no nosso dia a dia. A gente precisa pensar de forma responsável. O atleta de alto rendimento tem de ter isso em mente. Tem de procurar médicos que sejam especialistas em esporte.

Entendimento das proibições

O que a gente faz é estar sempre proporcionando palestras de especialistas (como os da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem), do COB, dos nossos médicos. Palestras que explicam o que é o doping, o que acontece, por que não pode cada coisa. Um processo de tentar conscientizar mesmo. Se vai tomar um suplemento, consulte a nutricionista. Se vai tomar um remédio, tem de saber se pode. O nível de instrução de muitos é pequeno. Precisamos trabalhar por fora. Os da seleção são conscientes e os da base que estão aqui na aclimatação se beneficiam dessa troca. Já entram no esquema. Acordam para pesar. Falam junto de remédios, de procedimentos. Começam a disseminar essa cultura.

Infográfico - Mundial de Judô 2019

Gustavo Cunha, de Hamamatsu, no Japão - rededoesporte.gov.br