Natação
Coreia do Sul
Ele deixou Roraima para treinar nadadores que juntos têm 13 pódios olímpicos e 24 em mundiais
Estado localizado no extremo norte do país, com fronteiras com a Venezuela e Guiana, Roraima está muito longe dos grandes centros brasileiros da natação. Milhares de quilômetros separam a capital Boa Vista de potências da modalidade como o Pinheiros, em São Paulo, ou o Minas Tênis Clube, em Belo Horizonte. Mas foi de lá, de Boa Vista, que Dellano Silva, um determinado técnico de natação de apenas 30 anos, trilhou um caminho que o levou a trabalhar com alguns dos maiores atletas do planeta.
“Para ser um bom treinador, você tem que entender que o trabalho é todo para eles. É uma entrega sua para que eles tenham sucesso. Se você não enxergar dessa maneira, não vai ajudar a desenvolver o outro em sua totalidade”
Dellano Silva, técnico de natação
Dellano participa do Mundial de Desportos Aquáticos de Gwangju como um dos treinadores do sul-africano Chad le Clos, 27 anos, campeão olímpico dos 200m borboleta e prata nos 100m borboleta em Londres 2012, além de prata nos 200m livre e nos 100m borboleta nos Jogos Rio 2016. O sul-africano tem ainda no currículo quatro ouros e uma prata em mundiais e, na Coreia, Dellano trabalha para que essa coleção seja ampliada.
A improvável história que uniu Dellano e le Clos teve início no Brasil, quando o treinador deixou Roraima com a cara e a coragem para trabalhar no Minas Tênis Clube. “Eu comecei a nadar em 2001. Fui um nadador medíocre e parei em 2006. Entrei na faculdade e fui fazer ciências biológicas na Universidade Federal de Roraima e aí, certo dia, minha antiga treinadora e presidente do clube que eu representava em Roraima, a Gilda Hupsel, me ligou e falou: 'Dellano, um dos técnicos passou no concurso da Polícia Militar. Você pode vir aqui e trabalhar só duas semanas até eu achar outro profissional?'”, recorda Dellano. E esse foi momento em que sua vida e o ofício de treinador se juntaram pela primeira vez.
“Depois de duas semanas lá tapando esse buraco, percebi que era isso o que queria fazer da vida. Tranquei a faculdade de ciências biológicas e comecei a fazer educação física no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima. Isso foi de 2008 até 2011, quando me formei, mas já tinha começado a trabalhar antes, logo que comecei a faculdade, como estagiário, sempre envolvido com a natação”.
Não demorou para que Dellano percebesse uma realidade dura de seu estado. E isso o forçou a buscar novos desafios para seguir se aprimorando como treinador. “Enquanto estava trabalhando no clube de natação e na Federação de Natação, ganhamos a primeira e única medalha de Roraima em Campeonato Brasileiro de categoria, que foi de um atleta meu chamado Eduardo Amorim, na prova de 50m livre, em 2011. Por conta disso, fui escolhido para representar Roraima no Conselho Técnico Nacional de Natação, que tinha um representante de cada estado”, lembra.
“Em 2013, numa dessas reuniões, eu me apresentei para os treinadores do Minas Tênis Clube e do Pinheiros. Falei quem era, que trabalhava com natação em Roraima, contei como era a realidade lá e disse que gostaria de saber se poderia ficar um tempo no clube deles e aprender um pouco mais na borda da piscina, só observando como trabalhavam. Eu queria aprender o máximo que pudesse para depois voltar para Roraima e tentar desenvolver a natação lá”, explica Dellano.
“O Pinheiros na época não me deu resposta, mas o Minas foi receptivo por meio do professor Marcelo Vaccari, que fez essa ponte minha com a diretoria do departamento de natação do Minas”, continua. Com o aval do clube mineiro, Dellano raspou as economias, fez as malas e partiu para uma temporada de um mês em Belo Horizonte. “Eu chegava ao Minas às 7h30 e saía às 20h. Acompanhava todas as equipes, todas as sessões, dentro e fora d'água, tentando aprender o máximo. Uma das grandes dificuldades de Roraima é justamente essa questão geográfica. Nós ficamos longe de tudo e é difícil ter um intercâmbio com outros profissionais. Você fica limitado em relação a desenvolvimento profissional”, ressalta.
Com Cielo nos EUA
O que ele jamais poderia imaginar é que sua aposta faria seu destino se cruzar com o do campeão olímpico e recordista mundial Cesar Cielo, ouro em Pequim 2008 nos 50m livre. E esse encontro mudou sua vida completamente. “No penúltimo dia no Minas, o head coach, que na época era um australiano chamado Scott Volkers, um treinador renomado, que treinou recordistas mundiais e campeões olímpicos, chegou para mim e quis saber se eu tinha interesse em trabalhar com eles, pois queria fazer uma proposta”.
"Cielo é um gênio do esporte da mesma forma que Pelé foi gênio, que Messi é gênio. O nível de precisão dele nos treinos era uma coisa absurda, que nunca vi nenhuma outra vez com ninguém"
“Obviamente que aceitei. Voltei para Roraima e uns quatro meses depois recebi uma ligação do diretor do departamento de natação do Minas, Teófilo Laborne. Ele falou que tinha surgido uma vaga. O Cielo foi treinar no Minas em 2014 e com isso a demanda de treinadores aumentou, pois é preciso mais atenção para um atleta do naipe do Cielo. Eles pediram para eu submeter meu currículo, passei pelo processo seletivo e, ao fim, fui escolhido”, detalha Dellano.
Só que havia um ponto delicado na proposta. Se Cielo, por qualquer motivo, decidisse deixar o Minas, a vaga de Dellano seria encerrada imediatamente. O risco não o impediu de fazer uma nova aposta. “Fui para ajudar a equipe de velocidade, da qual o Cielo fazia parte. Cheguei em julho de 2014, mas um mês depois o Cielo decidiu não treinar mais no clube e ir fazer a preparação nos Estados Unidos, com o Scott Goodrich, o antigo treinador dele”.
O que parecia ser um pesadelo acabou se transformando em oportunidade inacreditável para Dellano. “Usando as palavras do Cielo, ele chegou para a diretoria e disse: 'Olha, o cara é bom, mas ele é muito cru ainda. Precisa de mais experiência com o alto nível'. Então, o Cielo disse para a diretoria do Minas que gostaria de me levar para os Estados Unidos se eles me liberassem. A diretoria concordou e aí fui para os Estados Unidos com o Cielo depois de um mês que tinha chegado ao Minas”, diverte-se.
Quando fala sobre Cesar Cielo, Dellano revela uma característica impressionante do campeão olímpico. “O Cielo é muito exigente no processo de treinamento dele. Exigente com precisão, com o conhecimento dos treinadores, porque ele é um gênio. É um gênio do esporte da mesma forma que Pelé foi gênio, que Messi é gênio. Cielo é um gênio da natação”, afirma o treinador.
“O nível de precisão dele nos treinos era uma coisa absurda, que nunca vi nenhuma outra vez com ninguém. Às vezes, a gente falava: 'Cielo, você tem que fazer quatro tiros de 25 metros a cada um minuto para tal tempo'. Ele ia lá, fazia o primeiro tiro e a gente falava: 'Você tem que ser dez centésimos mais rápido, ou dez centésimos mais lento'. Ele ia lá e conseguia fazer ajustes de dez centésimos de segundo. Era uma coisa absurda. Com o Cielo fui obrigado a desenvolver ainda mais esse meu lado de precisão, de métrica, de qualidade técnica”, continua.
Chad Le Clos
“Passei quatro meses com o Cielo nos Estados Unidos fazendo a preparação para o Mundial de Piscina Curta, que foi em Doha, e foi uma experiência incrível trabalhar com ele lá. Quando foi no final de 2014, voltei definitivamente para Belo Horizonte e trabalhei no Minas até julho de 2018”, conta Dellano. Então, no ano passado, ele se lançou a uma nova oportunidade: a de trabalhar com Chad le Clos na Turquia.
“O grande diferencial do Chad é a parte mental. Com ele tive que aprender essa parte mais humana, esse lado mais psicológico e de relacionamento”
“Comecei a trabalhar com Chade le Clos no início de setembro do ano passado e inicialmente trabalhava só com ele. Fui contratado para fazer as sessões na piscina e na academia. Eu tenho um background nas duas áreas, porque o head coach anterior, o Andrea di Nino, não podia viajar com o Chad para todos os lugares que ele vai. Ele viaja bastante para competição, negócios, e foi por isso que fui contratado. Houve um processo seletivo internacional. Competi contra outros 55 treinadores do resto do mundo e, ao fim das três etapas, fui selecionado”, diz com uma ponta de orgulho.
Dellano trabalha na equipe Energy Standard, um clube internacional de natação, com sede em Belek, na Turquia, cidade próxima a Antalia, e do qual fazem parte várias estrelas das piscinas. Assim como ocorreu com Cielo, no Minas, Dellano conta que seu cargo esteve em risco quando Andrea di Nino e Chad le Clos decidiram encerrar a parceria.
“Eu venho trabalhando com esse staff de italianos e mais o Chad desde setembro passado. Isso durou até março, quando o Chad e o Andrea di Nino decidiram encerrar a parceria. Teoricamente, meu cargo deixaria de existir, pois fui contratado para fazer a entrega desse head coach. Mas aí o Chad falou que acreditava que eu agregava valor à preparação dele e que gostaria que eu continuasse trabalhando com ele”, diz.
“Ele disse que a decisão era minha e eu obviamente disse que gostaria de continuar trabalhando com ele. Aos poucos, fui sendo incorporado ao time do Energy Standard, que é o time que o Chad defende e que é dirigido pelo James Gibson, o técnico principal”.
Se com Cielo Dellano desenvolveu o lado técnico de seu trabalho, com Chad le Clos ele teve que aperfeiçoar um outro aspecto. “O grande diferencial dele é a parte mental. Ele não desiste nunca. Ele odeia perder, é competitivo e sempre acredita na capacidade dele. Então, com o Chad tive que aprender mais essa parte mais humana, esse lado psicológico e de relacionamento com o atleta”, conta.
“Eu vim de um background mais científico. E ao longo da minha carreira, tive a oportunidade de trabalhar com o Scott Volkers, o Sérgio Marques, que está lá no Minas como o novo head coach, e agora com o James Gibson. Todos têm esse lado humano mais desenvolvido e para mim tem sido ótimo aprender a lidar desse jeito com os atletas”, ressalta.
Lições com as estrelas
Dellano hoje é um profissional diferente daquele que deixou Roraima para fazer uma aposta em Belo Horizonte, em 2014. Atualmente, além de le Clos, ele ajuda no treinamento de outras feras da natação mundial, como a sueca Sarah Sjostrom, o francês Florant Manaudou e o britânico Ben Proud, entre outros.
Assim como Cielo e le Clos, Sarah e Manaudou também são campeões olímpicos e mundiais. Para se ter uma ideia do peso desse quarteto, eles juntos têm no currículo quatro ouros, seis pratas e três bronzes em Olimpíadas, além de 18 ouros, cinco pratas e um bronze em mundiais.
O treinador de Roraima está na Coreia para seu primeiro Mundial. Ele diz que estará nas Olimpíadas de Tóquio 2020 de uma forma ou de outra: seja na borda da piscina na equipe de um de seus atletas, seja nas arquibancadas, acompanhando de perto o resultado do trabalho que ajudou a fazer.
"Sorte é uma situação em que alguém preparado encontra uma oportunidade. Se você não estiver preparado para fazer alguns sacrifícios, você não vai ter o que as pessoas chamam de sorte"
Sobre as lições que tirou das experiências que viveu na natação, Dellano Silva credita seu sucesso a alguns fatores determinantes. “Primeiramente, tive um suporte familiar incrível. Meus pais sempre me incentivaram, a mim e aos meus irmãos, a fazer o que a gente gosta e o que nos deixa feliz. Eles nos deram tudo o que precisávamos: suporte emocional, afetivo e financeiro”.
“Em segundo lugar, o fato de estar em Roraima, apesar das dificuldades, te dá muitas oportunidades, mas não muitas possibilidades. Eu tive a oportunidade de trabalhar na Federação de Natação muito jovem, com 21 anos. Contribuiu bastante o fato de eu poder ter tido diferentes experiências profissionais cedo. Se eu estivesse em um grande centro, como em São Paulo, dificilmente teria tido essas oportunidades, porque a concorrência é maior”, destaca.
“Por último, eu não acredito na sorte pela sorte. No início, escutei muito que tive sorte, mas acho que a sorte é uma situação em que alguém preparado encontra uma oportunidade. E se você não estiver preparado para fazer alguns sacrifícios, porque cada escolha pressupõe uma renúncia, você não vai ter o que as pessoas chamam de sorte”, ensina.
Ao fim, fica a maior lição de Dellano para quem, como ele, pensa em um dia se dedicar ao ofício de construir campeões. “Para ser um bom treinador, você tem que entender e tem que encarar que o trabalho é todo para eles. É uma entrega sua para que eles tenham sucesso. Se você não enxergar dessa maneira, não vai conseguir ajudar a desenvolver o outro em sua totalidade”.
Luiz Roberto Magalhães, de Gwangju, na Coreia do Sul - rededoesporte.gov.br