Atletismo
Toronto 2015
Bocha conquista dois ouros e atletas vivem “choque de autonomia”
No mundo do senso comum, a conjugação de precisão milimétrica e raciocínio estratégico não parecem combinar com altos graus de paralisia cerebral e deficiências severas. A bocha paralímpica, contudo, desconstrói essa crença e a equipe brasileira tem protagonismo nesse processo de “desmanche”. Já no primeiro dia de competições no Abilities Centre, em Toronto, o Brasil confirmou a consistência do time que se prepara para os Jogos Rio 2016. Dos três pódios possíveis, conquistou três, com duas medalhas de ouro e um bronze.
O primeiro ouro ficou com a dupla da categoria BC4, em que os atletas têm mais força muscular para os lançamentos. Dirceu José Pinto, Eliseu dos Santos e Marcelo dos Santos se revezaram no time que derrotou o México por 14 x 0, a Argentina por 11 x 0 e bateu o Canadá na rodada decisiva da competição, no tiebreak, após empate em 3 x 3.
“Ficou claro que ainda temos algumas coisas a corrigir. Demos uma vacilada grande no início do jogo final, mas soubemos nos recuperar”, afirmou Dirceu, bicampeão paralímpico, em Londres (2012) e Pequim (2008). A prata ficou com o Canadá e o bronze, com a Argentina.
Na equipe que reunia atletas das classes BC2 e BC1, o Brasil também foi ao topo do pódio, ainda que superado pelo Canadá no tiebreak da terceira rodada. Na soma dos resultados, o time brasileiro foi melhor no saldo de pontos e, assim, Lucas Ferreira de Araújo, Maciel de Souza Santos, Guilherme Germano e José Carlos de Oliveira ouviram o hino nacional. A prata ficou para a Argentina e o bronze, para o Canadá.
A terceira medalha do dia foi para a dupla da categoria BC3, para atletas com grande dificuldade de mobilidade, e que têm a ajuda de calheiros para direcionar a bola antes do lançamento. O time nacional é formado por Antônio Leme e Daniele Martins. A prata ficou com a Colômbia e o ouro, com o Canadá. Neste domingo a modalidade tem sequência com o início das competições individuais.
Para o coordenador técnico geral da equipe, Darlan França, os atletas mostraram que estão na trilha certa para atingir a meta prevista no Rio de Janeiro, em 2016. “Temos como objetivo conquistar quatro ouros entre as sete possibilidades de medalha na Paralimpíada”, disse. O caminho até lá, segundo ele, envolve a sequência de um projeto que tem envolvido a capacitação de técnicos no Brasil, intercâmbios em competições e períodos de treinamento intensivo.
Dignidade e independência
Incluída no Plano Brasil Medalhas, do governo federal, a modalidade experimenta, segundo dirigentes e atletas, um momento diferenciado no Brasil, com mais de mil praticantes e uma estrutura que permite que os atletas viagem com segurança e tenham autonomia econômica e social.
“Em 2002, na primeira vez que prestei um serviço para a Seleção, o trabalho era voluntário. Hoje temos recursos e até patrocínios individuais para alguns”, afirma o paulista Wesley Saggiani, um dos dois fisioterapeutas que presta serviço à equipe, que também conta com psicóloga e médicos à disposição para eventualidades.
O time principal realiza semanas de treinamento concentrado quatro a cinco vezes por ano e os atletas de ponta contam com a Bolsa Pódio. “Não dá para imaginar o significado desse incentivo. Eles deixam de ser uma fonte de despesas e passam a sustentar a família. O investimento neles significa autonomia”, afirmou Márcia Campeão, militante na modalidade desde 1995, quando o esporte começou a ter difusão no Brasil.
A autonomia, no caso, não é expressão simbólica, mas algo cotidiano. “Os praticantes da bocha necessitam de ajuda para se deslocar, para chegar ao local de treinamento, para entrar com segurança e ocupar assentos em voos. Sem a bolsa, dependem de familiares e amigos. Com a bolsa, podem até contratar pessoas para executar essa função, treinar com mais tranquilidade.”, exemplifica Márcia, formada em educação física e com mestrado na Unicamp e Doutorado na Fiocruz em temas correlatos à bocha.
“Na verdade, significa não só um aprimoramento profissional, mas pessoal também”, afirmou Eliseu dos Santos, que pôde passar a pagar o irmão para ajudá-lo de forma mais sistematizada nos deslocamentos, conseguiu se estabelecer numa casa própria e agora sonha em montar um centro de treinamento nos fundos da própria residência.
“Para mim, me deu a possibilidade de ter uma fisioterapeuta particular, o que antes era simplesmente impossível”, completou Dirceu José Pinto, que também conta com apoios da Caixa, e prefeitura de Mogi das Cruzes e do Time SP. Para ele, a conclusão do Centro de Treinamento Paralímpico (já superou os 97% de conclusão), em São Paulo, é outro fator que vai ajudar a profissionalizar a modalidade.
Regra e categorias
O princípio do jogo é simples: chegar o mais perto possível da bola branca. Conseguir fazer isso é um processo que lembra as tacadas da sinuca e a estratégia do xadrez. Cada jogador é postado numa área delimitada no fundo da quadra. Numa disputa de quatro ou seis entradas (games), dependendo da categoria, cada equipe tem seis bolas para se aproximar da branca e evitar que o adversário faça o mesmo. Ao fim de cada Entrada, o juiz indica quantas bolas, e de qual equipe, estão de fato mais próximas, e define a pontuação.
Os atletas são separados em quatro categorias, de acordo com o comprometimento motor. Entre os atletas de menor mobilidade há inclusive a ajuda de terceiros, os chamados calheiros. Eles posicionam a calha e encaixam a bola de acordo com a indicação do jogador. O atleta, em seguida, toca a bola com uma haste que funciona como taco, fixada à boca ou à cabeça. Entre os atletas de mobilidade maior, a bola pode ser lançada com as mãos ou os pés.
Gustavo Cunha – Brasil2016.gov.br