Judô
Brasil de Ouro
Aurélio Miguel: um ouro em cinco atos
O choque que Aurélio Miguel sentiu em 1988 quando pisou pela primeira vez no Jangchung Gymnasium foi tão grande que ele não conseguiu frear o sentimento de nervosismo que o invadiu.
Em Seul, o jovem judoca, nascido em São Paulo em 10 de março de 1964, realizava, aos 24 anos, o grande sonho de sua vida: representar o Brasil nos Jogos Olímpicos. Desde que deixara o país rumo à Coreia do Sul, Aurélio sabia que estava partindo para uma experiência sem precedentes.
“É lógico que aquele voo e tudo o que veio depois foi muito diferente do que eu já tinha vivido”, conta Aurélio, hoje com 52 anos, vereador em São Paulo pelo Partido da República (PR) e que, além de seus projetos sociais, atua como empresário de uma administradora de imóveis.
“Eu estava indo para a Olimpíada e realizando o meu sonho. Quando chegamos a Seul, foi uma festa. Fomos para a Vila Olímpica e os alojamentos eram em prédios, bem diferente do que a gente estava acostumado. Saímos para conhecer a Vila e era tudo novidade. Depois teve a abertura da Olimpíada e, como o judô era um dos últimos esportes a disputar as medalhas, nós pudemos participar. Tiramos muitas fotos e foi bem especial. Então começamos os treinamentos e a preparação. Tínhamos que tomar muito cuidado para não ficarmos deslumbrados e com isso desviarmos do foco”, lembra o judoca.
Mas nem toda a pompa da abertura e nem os momentos alegres na vila tiveram, em Aurélio Miguel, um impacto tão impressionante quanto o sofrido quando ele observou pela primeira vez a agitação no ginásio que o marcaria de forma perene depois daqueles Jogos.
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“Quando a disputa do judô começou, com a luta do Sérgio Pessoa, fui lá para assistir. Me lembro bem que fiquei ansioso quando vi aquele ginásio lotado. Eu falei: ‘Meu Deus do Céu!’, ao ver todas aquelas pessoas nas arquibancadas com todos aqueles tambores. Era um barulho enorme e uma energia que nunca tinha visto. E eu também nunca tinha visto tantos jornalistas e fotógrafos juntos. Ali eu entendi o que era uma Olimpíada”, narra Aurélio Miguel.
O turbilhão de emoções foi tão forte que, a partir dali, ele tomou uma decisão que seria determinante. “Eu fiquei nervoso só de estar torcendo. Então, pus na minha cabeça que não iria mais ao ginásio para ver as lutas dos brasileiros. Eu fazia o treinamento de manhã e à tarde ficava quietinho no meu canto, só focando na competição”, diz o judoca.
Aurélio Miguel adotou como prática um hábito que havia descoberto certa vez na Europa e que o deixava bem às vésperas de competições. “Uma vez eu estava na Áustria e ali descobri que, quando eu entrava na piscina depois do treinamento, eu relaxava. Então, todos os dias após os treinos em Seul eu ia para a piscina me soltar, alongar, e, depois, fazia uma sauna. Só então voltava para conversar com os colegas na Vila. Fiquei bem focado em relação a isso”.
No começo, o medo
Quando desembarcou em Seul, Aurélio Miguel já era um atleta consagrado por conquistas internacionais. Uma história de sucesso que teve início competitivo de forma hesitante.
Ao nascer, Aurélio Miguel sofreu com problemas de saúde. E a indicação dos médicos era que, assim que possível, ele deveria praticar esportes para fortalecer o organismo. “Tive bronquite e pneumonia logo depois do parto. Nasci com uns cinco quilos e perdi quase dois pouco depois. Isso é muito para uma criança”, conta. “Então, falaram para os meus pais que quando eu crescesse seria importante praticar esportes. Aí, com uns cinco para seis anos, comecei no judô e natação”.
Perto de completar 7 anos, o pequeno Aurélio saiu um dia de casa para, pela primeira vez, participar de um torneio de judô no colégio. Desse episódio ele tem uma recordação bem viva. “A primeira competição que disputei foi com 6 anos e pouco. Antes da minha luta, vi meu irmão competindo. Fiquei assustado e resolvi não lutar”, conta Aurélio, referindo-se ao irmão Carlos, na época com 8 anos.
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“Eu me escondi no vestiário e não disputei nada. Meu irmão me achou, veio com meu pai, e meu pai disse: ‘Você quer competir?’ Eu disse que não, que estava morrendo de medo. E ele disse que não tinha problemas, que eu estava no esporte para o desenvolvimento da minha saúde e não para fazer algo que eu não queria”.
Foram necessários alguns meses até que o pequeno Aurélio Miguel tomasse coragem para encarar um torneio de novo. “Depois de uns dois anos, falei para o meu pai que queria competir. E ele disse que, se fosse assim, era melhor fazer direito. Ele me explicou que o judô tinha que ser visto do mesmo jeito que os estudos e disse que eu tinha que me empenhar para tentar ser o melhor. Aí eu comecei a treinar mais forte. Acabei ganhando minha primeira competição e isso despertou a vontade de participar de outras”, prossegue. Ali começava, de fato, a trilha do paulistano que daria ao Brasil a primeira medalha de ouro olímpica do judô.
“Quando cresci um pouco mais, disputei meu primeiro Campeonato Paulistano. Venci e passei a querer ganhar o Campeonato Paulista. Mas demorei até conseguir disputar esse campeonato, porque ainda era novo. No primeiro Paulista que participei, acabei não vencendo. Mas, depois, consegui ser campeão. Então, passei a sonhar com o Brasileiro de categoria. Até que, um dia, tive contato, com uns 15 para 16 anos, com a Seleção Olímpica que ia para Moscou (1980). Ali me entusiasmei e, a partir de então, disse a mim mesmo que um dia queria disputar uma Olimpíada”, narra.
Hino à capela para o campeão mundial
Aos 19 anos, Aurélio Miguel obteve um triunfo que representou um marco em sua carreira. “Em 1982, eu disputei o Mundial Universitário, na Finlândia, e lá venci meu ídolo na época, o Tico, o Carlos Eduardo Motta”, lembra Aurélio, referindo-se a um dos expoentes do judô nacional na década de 1970. Tico, que disputou os Jogos Olímpicos de Montreal 1976, foi vice-campeão dos Jogos Pan-Americanos de 1975, na Cidade do México, e acumulou títulos internacionais, como campeão pan-americano, sul-americano, ibero-americano, além de diversas conquistas em brasileiros e paulistas. Ele era uma referência para os judocas brasileiros e o fato de tê-lo vencido foi impactante para Aurélio Miguel.
“Para mim, aquela vitória foi fantástica. Eu não ganhei a competição na Finlândia. Mas, até aquele momento, a minha geração tinha pouca oportunidade e era difícil vencer japoneses ou russos, duas das escolas que tinham mais tradição. Mas quando tive a chance de disputar um torneio com eles, percebi que, tecnicamente, o nosso judô era até evoluído em relação às outras escolas, com exceção dos japoneses, que estavam em um outro patamar. Então, foi ali, na Finlândia, que criei uma referência de que poderia ascender e conquistar títulos internacionais”.
Em 1983, um ano depois de ter começado a compreender seu potencial na Finlândia, a carreira de Aurélio Miguel na categoria meio-pesado alcançou um novo patamar de excelência. “No ano seguinte ao Mundial Universitário teve o Mundial Junior. Foi em Porto Rico e eu tinha 19 anos. Eu cheguei lá e a chave era bem difícil. Na primeira luta, venci um coreano. Depois, acho que peguei um soviético, não me lembro ao certo. Na luta seguinte, venci um canadense e, na semifinal, um argentino, Fabian Lannutti”, enumerou Aurélio, citando o rival que, em 1983, ganhou a medalha de bronze no Pan de Caracas, na Venezuela.
“Eu venci esse argentino e entrei para a final contra um japonês. Eu estava me concentrando, no vestiário, pensando se ia dar, se eu iria conseguir vencer um atleta do Japão, pensando na minha família e no meu mestre, o professor Massao Shinohara (pai de Luiz Shinohara, atual técnico da Seleção Brasileira masculina de judô), quando aconteceu um negócio que, para mim, foi bem marcante”, prossegue Aurélio.“Apareceu o presidente da Confederação Brasileira de Judô. E ele me disse que a medalha de prata era um resultado muito bom”, conta Aurélio, referindo-se a Sérgio Bahi, que, à época, liderava a entidade. “Nunca um brasileiro tinha vencido um Mundial Junior e aquele comentário não me agradou. Em vez de ele me incentivar, de me colocar para cima, ele falou aquilo. Mas acho que o que ele disse até que me estimulou. Eu saí do vestiário já querendo catar o japonês de todo jeito. Quando chegou a hora da luta, me lembro que eu o dominei bem. Criei duas ou três oportunidades e aí, no final, ganhei na decisão dos juízes. Para aquela idade, esse foi um feito fantástico”, diz.
Aurélio Miguel, como não poderia deixar de ser, estava orgulhoso do que havia conquistado. Era o auge de sua carreira até então. E o ápice daquele momento, em sua cabeça, seria ver a bandeira do Brasil subindo e ouvir o Hino Nacional na cerimônia de premiação. Mas então ocorreu um episódio inusitado.
“Quando me preparava para subir ao pódio, alguém da organização apareceu e disse que eles não tinham o Hino Nacional para tocar. Eles jamais esperavam que um brasileiro pudesse vencer. Então me disseram que eles iriam usar o Hino Olímpico no lugar do Hino do Brasil. Na mesma hora eu disse não. Disse que aquilo era um desrespeito e falei que não iria subir ao pódio e que eles me dessem a minha medalha”.
Preocupados com a repercussão, uma vez que havia vários jornalistas no local e muitas câmeras filmando tudo, os organizadores, assustados, recorreram a uma solução inusitada. “Eles chamaram o pessoal da Seleção Brasileira e perguntaram se eles poderiam cantar o Hino Nacional durante a cerimônia de premiação. Depois me perguntaram se, naquela condição, eu concordava em participar. Eu disse que, se fosse assim, participaria. E foi com os atletas da Seleção cantando o Hino Nacional à capela que subi ao pódio e recebi a medalha. Para mim, aquela conquista foi importantíssima. Depois dali passei a pensar que, se nessa fase eu já tinha um resultado tão forte como um título mundial, daria para chegar a resultados ainda maiores. Era só treinar”, encerra o judoca.
Trauma, corte e torneios na Europa
O sucesso de Aurélio Miguel em Porto Rico o transformou em estrela do judô brasileiro. Imediatamente, seu nome passou a ser cogitado como um atleta de peso da modalidade para disputar os Jogos Olímpicos de Los Angeles 1984.
Entretanto, uma desavença entre o judoca e o então superintendente da Confederação Brasileira de Judô, Joaquim Mamede, que viria a se tornar o presidente da entidade alguns anos depois, resultou no corte de Aurélio Miguel da Seleção Brasileira.
Ainda em 1983, Aurélio disputou os Jogos Pan-Americanos de Caracas. “Fiz a final contra Isaac Azcuy, de Cuba, e perdi. Aí, pensei em me preparar para o Mundial de Moscou de 1983 e, depois, para as Olimpíadas de 1984, em Los Angeles. Mas aí veio aquela confusão com o Mamede”, lembra Aurélio.
“Uma semana antes do Mundial, a confederação percebeu que precisava de visto para entrar na União Soviética. E aí nós não fomos para o Mundial em 1983. Ficamos de fora. Acabamos indo treinar no Japão e, lá, tive problemas com o Mamede e fiquei de fora das Olimpíadas”, lamentou. Segundo o judoca, Mamede era autoritário e não respeitava os atletas, fato que ele não admitiu.
O que se seguiu após o a discussão com o dirigente foi um longo período de aprendizado e crescimento para Aurélio Miguel. Nos anos seguintes, visitou o Japão várias vezes e, na Europa, disputou torneios, aprimorando a técnica e fortalecendo a confiança da forma que precisava para chegar bem aos Jogos Olímpicos de Seul em 1988.
“Em 1983, os japoneses me convidaram para disputar o campeonato universitário no Japão. Eles pagariam tudo e então eu disse que aceitava ir com uma condição: que eles me dessem uma bolsa para eu treinar no Japão por um ano”, lembra Aurélio. “Eles aceitaram e no fim de 1983 viajei para o Japão. Eu fui para a Universidade de Tokai, em Kanagawa, perto de Yokohama, onde treinava a melhor equipe do Japão e de onde saiu o Yamashita, que foi o Pelé do judô na época”, diz Aurélio, referindo-se a Yasuhiro Yamashita, medalha de ouro nos Jogos de Los Angeles 1984, quatro vezes campeão mundial e ainda hoje considerado uma lenda na modalidade.
A experiência no Japão abriu as portas de Aurélio para os torneios na Europa. E então, desde 1984, ano em que foi campeão mundial universitário em Estrasburgo, na França, passou a disputar todos os anos competições no Velho Continente. “Equipes do mundo todo iam treinar no Japão e com o contato com eles descobri que havia vários torneios na Europa. Eles treinavam lá e depois iam disputar competições na Hungria, Tchecoslováquia, Alemanha e outros países. Descobri que havia uma sequência boa de torneios fortes na Europa e passei a competir lá regularmente”, continua o judoca.
Confiança no tatame e na cenoura
Dessa forma, quando o ano de 1988 chegou, Aurélio Miguel já possuía uma vasta bagagem internacional e colecionava dezenas de títulos em competições de prestígio na Europa e fora dela. Mais importante: no ano dos Jogos Olímpicos de Seul, ele chegou à Coreia do Sul no auge de sua forma técnica, física e mental.
“Em 1988, a primeira competição na Europa foi o Torneio de Paris, onde eu fui prata. Perdi para um francês na decisão. De lá, fui para o Aberto da Bulgária, onde venci. Depois, fui para a Tchecoslováquia, onde fui campeão. Viajei na sequência para a Hungria e fiquei com a prata. Então, fui para a Alemanha Ocidental e fui campeão”, enumera Aurélio Miguel, que, um ano antes, já tinha conquistado o ouro nos Jogos Pan-Americanos de Indianápolis e o bronze no Mundial de Essen, na Alemanha Ocidental.
“Minha autoestima ficou elevada depois de todos esses resultados e quando viajei para Seul tinha uns seis favoritos à medalha de ouro e eu estava entre eles. Eu tinha disputado sete torneios antes das Olimpíadas e tinha vencido cinco e conquistado a prata nos outros dois”, continua.
Além dos pódios nos torneios que antecederam aos Jogos da Coreia do Sul, Aurélio Miguel ainda ganhou um reforço fantástico para fortalecer a confiança no ouro em Seul. E esse impulso extra veio justamente de seu amigo e mentor pouco antes do embarque para as Olimpíadas.
Quando se encontrou com Massao Shinohara, o judoca ouviu de seu professor que ainda havia algo a ser feito antes da viagem rumo à Coreia do Sul. “Quando o Aurélio foi, em 88, ele veio se despedir para ir a Seul”, lembra Massao Shinohara, com um português precário e um jeito simpático de falar. “Então, falei para ele: ‘Vai firme’. No meu quintal, tinha plantado um pedacinho de cenoura. Daí eu arranquei a cenoura, lavei na torneira e disse: ‘Come isso que dá medalha’. Daí ele comeu, sabe? Daí eu arranquei mais uma, que ficou maior, né? Come essa aqui que dá medalha de ouro”, orientou Shinohara. “Ele acreditou e comeu tudo”, continua o mestre.
O divertido depoimento de Shinohara faz parte de um vídeo feito em homenagem aos 25 anos da medalha de ouro de Aurélio Miguel e que pode ser visto abaixo:
Amparado por essa poderosa combinação de treinos eficientes, resultados positivos em torneios internacionais e a dieta de cenouras do quintal de Massao Shinohara, Aurélio Miguel entrou com o corpo e o espírito preparados para lutar naquele histórico 30 de setembro de 1988 em Seul. A confiança era tamanha que, na véspera, o judoca já havia avisado aos colegas que algo extraordinário estava para acontecer no Jangchung Gymnasium.
Profecia em meio ao truco
Antes dos Jogos Olímpicos de Seul, o judô brasileiro já havia subido ao pódio olímpico quatro vezes. Em 1972, em Munique, o japonês naturalizado brasileiro Chiaki Ishii tornou-se o primeiro medalhista do país com um bronze na categoria meio-pesado. Depois disso, foram precisos 12 anos de espera pelas próximas três medalhas, que vieram de uma só vez, nos Jogos de Los Angeles 1984, com a prata de Douglas Vieira no meio-pesado e os bronzes de Walter Carmona (-86kg) e Luís Onmura (-71kg).
Até 1988, o país acumulava seis ouros olímpicos. A nação tinha se emocionado com o triunfo de Guilherme Paraense, no tiro esportivo, na Antuérpia 1920; com as vitórias de Adhemar Ferreira da Silva, no salto triplo, em Helsinque 1952 e Melbourne 1956; com as façanhas dos velejadores Lars Bjorkstrom e Alex Welter, na classe tornado, e Marcos Soares e Eduardo Penido, na classe 470, todos em Moscou 1980; e, finalmente, com a arrancada espetacular de Joaquim Cruz, nos 800 metros, em Los Angeles 1984.
“O judô tinha uma expectativa de bons resultados em Seul. Mas todos os que lutaram antes de mim perderam. Psicologicamente, a pressão foi aumentando. Mas eu estava de bem com a vida. Estava tranquilão”, lembra Aurélio, que se recorda de um episódio divertido na véspera de suas lutas.
“A gente gostava de jogar um truquinho na Vila Olímpica. E um dia antes de lutar, me lembro que a gente estava jogando no nosso prédio. Se na me engano, estávamos eu, o Adauto Domingues, o Robson Caetano e o Zequinha Barbosa. Eu jogava com o Adauto e aí, no meio do jogo, alguém comentou que o judô brasileiro não estava indo bem. E eu disse para eles ficarem tranqüilos porque no dia seguinte eles iriam tocar o Hino Nacional. Não falei aquilo para me gabar. Na verdade eu estava trabalhando minha autoestima”, revela Aurélio.
Uma noite inquietante
Apesar do discurso de tranquilidade e confiança, Aurélio Miguel viveu momentos de grande inquietação ao se deitar no dia 29 de setembro. “Foi ruim”, resume, ao ser perguntado como dormiu na véspera da conquista da medalha. “Antes de qualquer Olimpíada você não dorme fácil. Não existe isso. E é preciso tomar cuidado senão aquela situação te envolve e atrapalha tudo”, explica.
“Além disso, no nosso esporte tem o problema do peso. Eu tinha que controlar o meu peso naquele dia. Então você come pouco, se hidrata pouco... Eu tinha que pesar 95 quilos. Se pesasse 95 quilos e 100 gramas eu estava fora. E você fica mentalizando isso o tempo todo”, continua. “Me lembro que no começo da noite foi difícil. Mas depois eu dormi e dormi bem. Mas demorou. Fiquei mexendo muito na cama. Você fica que nem sardinha na farinha de rosca, sabe?”, brinca o judoca.
Aurélio Miguel acordou bem cedo na manhã de 30 de setembro. “Fui me pesar, junto com Geraldo Bernardes, e voltei a dizer que era para ele ficar tranquilo porque o Hino Nacional iria tocar. Eu estava trabalhando a cabeça de forma positiva. Procurei sempre pensar assim”, prossegue, citando o mentor e ex-treinador de Flávio Canto e fundador e técnico do Instituto Reação. Geraldo atualmente treina os atletas da Seleção Brasileira Rafaela Silva e Victor Penalber, entre outros.
“Eu pesei bem, abaixo de 95 quilos, e depois fui tomar o café da manhã. Então, voltei para descansar e tirei um cochilinho. Aí me levantei e me preparei para sair, porque as lutas começavam por volta das 14h. Comi um negocinho leve no almoço, peguei tudo o que podia pegar, como bolo, banana e tal, coloquei tudo na mochila e fui para a competição”, continua.
O primeiro passo foi controlar a adrenalina. “Quando entrei no ônibus e, depois, quando vi se aproximar o ginásio, me lembro que o coração começou a bater mais forte. Você entra para o ginásio, entra na sala de aquecimento, vê os adversários, tem toda aquela trocas de olhares e então você percebe de vez que chegou a hora. Mas eu estava confiante. Me sentia bem”, lembra Aurélio. “Ficamos todos ali até a hora que chamaram minha primeira luta”.
Em sua caminhada rumo ao primeiro ouro do judô brasileiro em Jogos Olímpicos, Aurélio Miguel superou cinco rivais. Eram experientes lutadores da Grã-Bretanha, Islândia, Itália, Tchecoslováquia e Alemanha, que não foram páreos para aquele judoca que parecia estar predestinado.
E cabe ao próprio Aurélio reviver cada uma daquelas lutas e contar, passados quase 28 anos, como ainda enxerga todos aqueles duelos que o transformaram em campeão olímpico.
Aurélio Miguel x Dennis Stewart (GBR)
“A luta anterior estava demorando. Eu levantava da cadeira e vinha uma pessoa e me mandava sentar. Mas eu estava nervoso e levantei de novo. Me chamaram a atenção. Aí, na terceira vez que me mandaram sentar, levantei e fui para o corredor. Aquilo era uma Olimpíada e eu estava com um nó no estômago”, diz.
“Eu comecei a dar uns gritos de dentro pra fora, usando o abdômen, e vi que isso me aliviou. Como sempre, antes da luta eu dei uns tapinhas na minha orelha, esfreguei o meu rosto e me concentrei. Me lembro que a luta contra o britânico foi dura. Eu não conseguia pegá-lo. Ele estava muito na defesa. Mas ganhei na decisão dos juízes. Quando aquela luta terminou, me recordo que falei para mim mesmo: ‘Será que me preparei direito?’ Já não sabia mais. Mas logo em seguida procurei me acalmar. ‘É a primeira luta. Todo mundo vem bem preparado para uma Olimpíada’, pensei. E isso me ajudou a ir mais tranquilo para a segunda luta”.
Aurélio Miguel x Bjarni Fridriksson (ISL)
“Ele tinha sido medalha de bronze nas Olimpíadas de Los Angeles (1984). Foi outra luta bem difícil, comigo tomando iniciativa e tentando encaixar o golpe. Foi um combate travado. Me lembro que ele quase conseguiu me levar para o chão no fim, mas consegui me segurar. O resultado foi para a decisão dos árbitros e venci”.
Aurélio Miguel x Juri Fazi (ITA)
“Esse aí saiu para perder de pouco. Ele ficou na retranca a luta inteira. Só que essa é sempre uma situação perigosa. Numa dessas, ele pode te dar um contra golpe e complicar tudo. Mas ele foi punido. Tomou várias punições (por falta de combatividade). Foi a luta mais fácil, porque ele não entrou para lutar”.
Aurélio Miguel x Jiri Sosna (TCH)
“Lembro que ele era um atleta muito forte. Era o atual campeão europeu. Eu tinha lutado com ele sete vezes e tinha vencido as sete. Então, ele me conhecia bem e estava confiante, pois tinha conquistado o campeonato continental na Europa. Mas procurei pensar na estatística, que era totalmente favorável a mim. Eu era o cara que ele tinha que vencer e não o contrário. Mas fiquei preocupado, é claro”, conta.
“Quando o cumprimentei, percebi algo logo de cara. Notei que ele não estava preparado para chegar a uma final olímpica. Eu percebi isso. Ele estava um pouco pálido. Eu sei, porque já tinha passado por essa experiência um ano antes, no Mundial, contra um japonês. Ali eu não estava preparado para a vitória. Eu tinha voltado de uma cirurgia (no ombro direito) e não me sentia confiante. Aí falei que tinha que tirar vantagem daquilo para abrir um pouco no começo da luta, porque senão ele poderia ficar uma fera ferida e se tornar perigoso. Foi uma luta dura. Eu tentando encaixar os golpes, tentando entrar. Ele começou a tomar punição porque estava na defensiva. Quando percebeu que poderia perder, começou a fazer umas coisas diferentes e quase me levou ao chão. Mas perdeu por punição”.
Nada de oba-oba
Com o triunfo sobre rival tcheco, Aurélio Miguel repetiu o feito de Douglas Vieira em Los Angeles 1984. Ele estava na final olímpica e, agora, apenas um combate o separava da glória. Mas, antes de travar a luta mais importante, Aurélio teve que controlar a mente e todo o clima de oba-oba que começava a ganhar força no Jangchung Gymnasium.
“Quando me classifiquei para a final, apareceu o Brasil inteiro querendo falar comigo. Veio o presidente do comitê olímpico, a imprensa, e todo mundo falando em medalha de prata, que era um grande resultado”, lembra Aurélio. “Aí eu falei para o Geraldo que não queria ver ninguém, que queria ficar quietinho porque, para mim, aquilo ali valia o ouro e não a prata”, conta o judoca.
Aurélio procurou se isolar como pôde. E a hora da verdade chegou...
Aurélio Miguel x Marc Meiling (ALE)
“Eu já tinha enfrentado ele seis vezes. Tinha vencido cinco vezes e perdido uma. Isso era bom para mim. Se eu pegasse o nosso escore, estava ótimo. Eu me lembro que não estava tão nervoso. Apesar de estar em um Olimpíada, ali eu não tinha noção ainda do que era, de verdade, uma Olimpíada e de tudo o que ela representa para um atleta e para seu país. Na hora você não pensa em nada disso”, diz.
“Antes da luta, o doutor Victor Matsudo, nosso fisiologista, me disse que o meu VO2 (a variável fisiológica que mais reflete a capacidade aeróbica do organismo e que indica a capacidade do indivíduo para transportar e metabolizar oxigênio durante uma atividade física) era, ali, de um corredor de maratona. Ele me disse para eu ficar tranquilo porque isso indicava que se eu ficasse cansado o meu adversário já teria morrido de cansaço antes de mim”, continua.
“Eu entrei para ganhar o ouro mesmo. Começou a luta e o alemão veio em um ritmo forte. Eles estudavam muito bem a gente. E ele entrou em um ritmo alucinante e me lembrei do Victor na hora. Aí eu disse: ‘Ah é? Se você vem a 100 por hora eu vou a 150’. Foi uma luta acelerada. E no terceiro minuto ele começou a cansar. No quarto minuto ele cansou para valer e foi onde tive vantagem. Ele tomou uma punição. No finalzinho, quase encaixei um golpe. Mas ele perdeu por punição mesmo”, narra.
“Na hora que acabou a luta, eu soube da vitória. Eu saí e já levantei o braço, porque sabia que tinha vencido. Naquela hora em que você ganhou a luta, imediatamente você começa a pensar: ‘Puxa, eu ganhei a Olimpíada!’ Parece que você está andando nas nuvens de tão leve que fica. Você pensa nos momentos que passou. Pensei muito na minha mãe, que perdi em 1986”, relembra Aurélio, referindo-se à Maria Catalina, a dona Catia. “Pensei no meu pai, nos meus irmãos, no meu professor Shinohara, nos amigos todos, nos amigos da Seleção. É uma festa. O primeiro que pulou em mim depois da final foi o Ricardo Sampaio, que já faleceu e é irmão do Rogério Sampaio”, recorda o campeão.
Cerveja no antidoping e festa com a imprensa
Essa é uma cena até difícil de imaginar nos dias de hoje. Mas em 1988 tudo soprava a favor dos dois finalistas olímpicos. Inclusive os métodos usados na coleta de amostra do material para os testes antidopagem. “Depois da final, tivemos que ir para o antidoping, onde é sempre constrangedor, pois o cara fica ali te olhando. Mas, naquela época, os caras davam uma cervejinha para a gente relaxar e ajudar a fazer xixi. Então, ficamos eu e o alemão tomando cerveja e batendo papo. Foi muito bacana porque ele estava feliz por ter conquistado a prata. E eu então nem se fala...”, diverte-se Aurélio Miguel.
“Depois que fiz o antidoping teve um monte de entrevista. Me lembro que não conseguia ficar quieto. Depois que você ganha uma Olimpíada, você fica à mercê do que o pessoal diz para você fazer, né? Depois de tudo, eu fui comemorar com o pessoal da imprensa na Vila Olímpica. Tinha várias pessoas lá, um monte de jornalistas, e foi bem legal”, continua.
Honra e os Jogos Olímpicos Rio 2016
O exercício de voltar no tempo e recordar tudo o que viveu em Seul fez bem a Aurélio Miguel, que pôde reviver o capítulo mais marcante de sua vida esportiva. Então, foi pedido que ele analisasse, hoje, o quer é se sentir um campeão olímpico.
“É gostoso, sabe? Você se propôs a algo, dedicou uma vida e passou por obstáculos, como qualquer um que tem uma realização, que sempre precede de sacrifícios. Eu sou muito feliz por ter vivido isso tudo. É legal. Na verdade, é fantástico. E tem o aspecto do que fica depois, do que você pode contribuir para elevar o esporte que você pratica. É uma honra muito grande. Foi uma honra ter disputado as Olimpíadas pelo meu país e ter visto a bandeira brasileira subindo no lugar mais alto e com o Hino Nacional sendo tocado. Toda vez que toca o Hino me vem a lembrança daquele momento olímpico e do Mundial de 1983”, diz o campeão.
Aurélio Miguel disputou três Olimpíadas. Depois do ouro em Seul, competiu em Barcelona 1992 e não subiu ao pódio. Mas o judoca ainda viveria essa incrível sensação mais uma vez, em Atlanta 1996, quando conquistou a segunda medalha olímpica, desta vez de bronze.
Em 2013, ano em que perdeu o pai, Aurélio Miguel Marín, o campeão olímpico teve seu nome imortalizado de forma definitiva ao entrar para o Hall da Fama do Judô. Agora, em 2016, ele viverá uma nova emoção, desta vez longe dos tatames. Para Aurélio Miguel, os Jogos Olímpicos Rio 2016 serão o ápice de um processo que trouxe muitos benefícios ao esporte brasileiro.
“Eu acho que no aspecto do esporte nunca houve a possibilidade de uma preparação de tamanha qualidade em tantas modalidades”, explica. “Vejo que esse ciclo começou lá atrás, em 2005, quando já sabíamos que iríamos realizar os Jogos Pan-Americanos do Rio em 2007. E esse caminho levou até as Olimpíadas de 2016 no Rio. O esporte nunca teve uma estrutura tão sólida quanto hoje. No meu esporte nunca houve uma estrutura tão boa. É muito diferente do meu tempo. E tudo veio em virtude dos Jogos Olímpicos. Vejo que os atletas que surgiram, de uma forma geral, estão elevando o nível do esporte”, continua o campeão olímpico, que demonstra otimismo em relação ao que o Brasil pode fazer em agosto, no Rio de Janeiro.
“Acho que teremos a maior apresentação de todos os tempos em relação a resultados. Mas o mais importante dessa Olimpíada é que fique a cultura do esporte na nossa sociedade, no nosso povo. A preocupação é dar continuidade disso depois da Olimpíada e eu acredito nisso. Vejo o esporte como um grande aliado de nossas crianças e de nossos jovens no futuro”, encerra o único homem de ouro do Brasil dos Jogos Olímpicos de Seul 1988.
Luiz Roberto Magalhães – brasil2016.gov.br