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Nápoles
A história de resiliência, amizade e superação de Anouchka na Universíade 2019
O slogan da 30ª Universíade, "To be unique" (ser único), encontrou sua perfeita representação em Anouchka, atleta de 22 anos de Madagascar que disputou sua primeira grande competição internacional em Nápoles, na Itália. A história de como Anouchka passou das lágrimas de desespero por não poder competir no salto triplo para se tornar uma das competidoras do heptatlo comoveu árbitros, dirigentes, voluntários, outros atletas e, principalmente, dois treinadores brasileiros do atletismo.
Com uma safra brilhante de atletas universitários – como o velocista Paulo André e o barreirista Alison Santos -, os técnicos Fernando de Oliveira e Neilton Moura embarcaram para Nápoles dispostos a voltar com ótimos resultados na bagagem. O que eles não imaginavam é que, depois de anos de carreira, veriam de perto e teriam participação direta em uma demonstração incrível do poder do esporte.
Durante a preparação da equipe, antes do início das competições, os brasileiros fizeram alguns treinos nas instalações reservadas aos atletas e encontraram uma menina um tanto perdida. Única atleta de Madagascar no atletismo, Anouchka havia viajado mais de 7 mil quilômetros para realizar o sonho de disputar sua prova, o salto triplo, com alguns dos melhores atletas do mundo. "O dirigente que veio com ela a deixou sozinha. Perguntei se ela precisava de ajuda e ela falou: 'Sim, professor, se o senhor puder me ajudar, eu agradeço'. Aí ela começou a se aproximar cada vez mais de nós e, no final, aonde íamos treinar ela perguntava e ia junto", conta Fernando de Oliveira.
"A ideia de alguém que faz salto triplo e terminar o heptatlo é coisa de outro mundo, mas não tinha outro jeito. Notamos nela dignidade e personalidade. Ela não aceitava vir para cá par passear. Ela queria competir, e nós nos emocionamos com isso"
Fernando de Oliveira, técnico de atletismo
Quando começaram a trabalhar o salto triplo com Anouchka, no entanto, os brasileiros perceberam que ela ainda estava "crua". "Percebemos que ela tinha vários problemas: na distância da corrida, na entrada do salto, tinha dificuldades para fechar o salto", lembra. Mas o problema maior ainda estava por vir. Na véspera da competição feminina do salto triplo, o treinador Neilton Moura foi checar as atletas inscritas e não encontrou o nome de Anouchka.
"Para participar, você tem que confirmar um dia antes, mas ela não sabia disso. Isso era função do chefe de delegação dela, não dela. Mas quando chegamos vimos que ela realmente não estava inscrita para prova", explica Thiago Moura, filho de Neilton e atleta do salto triplo, que também ajudava Anouchka nos treinamentos. Aflitos, os brasileiros correram com Anouchka para tentar colocá-la na prova, mas o delegado de competição responsável foi inflexível. "A Anouchka ajoelhou chorando aos pés do cara e ele não autorizou. Tentamos argumentar e nada", conta Fernando.
Depois de muita conversa, a organização abriu a possibilidade de Anouchka competir em uma prova em outro dia e a opção era o heptatlo. Foi um misto de alívio e aflição para os treinadores brasileiros. Anouchka conseguiu a inscrição, mas o heptatlo é uma das mais pesadas competições do atletismo. São sete provas divididas em dois dias: no primeiro dia disputa-se, pela ordem, os 100m com barreiras, salto em altura, arremesso de peso e 200m rasos. No segundo, as provas são salto em distância, lançamento de dardo e os 800m.
Para piorar, Anouchka não tinha nenhuma familiaridade com a parte técnica de provas como arremesso de peso e lançamento de dardo. "Saímos com ela direto para a pista, para ensiná-la. A ideia de alguém que faz salto triplo e treina poucas vezes terminar o heptatlo é coisa de outro mundo, mas nós fomos, não tinha outro jeito. E aí começamos a notar nela uma dignidade e uma personalidade absurdas. Ela não aceitava vir para cá para passear. Ela queria competir, e nós nos emocionamos com isso", conta Fernando de Oliveira.
"O nosso maior problema era o lançamento de dardo. Nós não tínhamos treinador de lançamento de dardo. E aí nós treinamos o posicionamento da mão com ela e usamos um sarrafo do salto em altura, porque não tinha dardo no local de treino", lembra o técnico, que também contou com a ajuda do treinador italiano Domenico Ingrosso.
"O time brasileiro me ajudou e me apoiou. Tenho muito respeito por eles. Não me preparei para o heptatlo, mas competi e terminei. Estou tão feliz. Foi uma grande experiência",
Anouchka
Chegou o primeiro dia de provas, na quinta-feira (11.07), e os treinadores estavam tão ansiosos com a atleta quanto para as provas dos brasileiros. Na prova dos 100m com barreiras, Anouchka conseguiu completar a prova em 16s21, sem derrubar nenhuma barreira. "Aí fomos prova a prova: salto em altura, arremesso de peso", conta Fernando.
No segundo dia, sexta (12.07), a preocupação era o lançamento de dardo, e Anouchka começou a sentir dores já durante a prova do salto em distância. "Nosso medo era que ela não marcasse no dardo, mas ela pegou e lançou 17m50. Não é lá grandes coisas, mas terminou", lembra Fernando. Mas para a última prova, a dos 800m, Anouchka estava mancando. "Chamamos um fisioterapeuta português. Ele fez uma massagem nela, colocou uma bandagem, e ela conseguiu melhorar a andadura e dava até para trotar. Mesmo assim a gente estava com o coração desesperado, porque nós queríamos que ela terminasse a competição".
Quando Anouchka terminou a prova dos 800m no Estádio San Paolo, após 2min37s93, parecia que o Brasil tinha ganhado uma medalha de ouro. "Quando ela entrou na pista toda sorridente, foi incrível. Sentindo dor, mas toda sorridente. E terminou os 800m. Nós nos jogamos no chão como se tivéssemos ganhado a Copa do Mundo".
"Durante a competição do heptatlo, árbitros das provas, equipes da competição, gente que estava assistindo, todos começaram a notar Anouchka e viram o esforço para que desse certo. No final, ela foi cumprimentada por todos e tirou foto como um monte de gente", lembrou Fernando.
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Se antes não conseguiu conter as lágrimas ao ser impedida de competir no salto triplo, dessa vez Anouchka era só sorrisos, mesmo com a última posição no heptatlo. "O time brasileiro me ajudou e me apoiou. Tenho muito respeito por eles. É minha primeira Universíade, meu primeiro torneio internacional. Não me preparei para o heptatlo, mas competi e terminei. Estou tão feliz. Foi uma grande experiência", disse a atleta de Madagascar.
Para os brasileiros, foi uma lição que não será esquecida. "Ela competiu maravilhosamente. Em momento algum baixou a cabeça para nada. É algo que só o esporte proporciona. Uma situação totalmente diferente do que já vi na vida. Isso mudou minha cabeça completamente, de ver o que é um atleta de verdade. Nós conhecemos campeões olímpicos, mundiais , mas não vemos pessoas como ela e professores como eles", completou Thiago Moura.
"Ela veio com um espírito tão limpo e lindo e nos ensinou, limpou nossa alma. Tem um significado muito acima de somente esporte. Nunca vai ser só esporte. Não pode ser só esporte uma competição universitária, tem que ter algo a mais. Ela é a estrela dessa competição. Ela traz no seu corpo, na sua alma, no seu jeito, o significado dessa competição", emocionou-se Fernando de Oliveira, que agora pretende tentar levar Anouchka para treinar no Brasil. "Agora o Brasil é o meu time favorito", sorriu Anouchka.
Mateus Baeta, de Nápoles, na Itália - rededoesporte.gov.br