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Natacao paralímpica

25/08/2021 23h09

Natação

Wendell Belarmino: paixão por voar ajuda a direcionar nado do brasileiro em provas “no escuro”

Campeão mundial dos 50m livre é fã de túneis de vento, e consciência corporal para se mover no ar contribui, segundo ele, para nadar em linha reta nas provas de velocidade para cegos

Sempre que tem uma brecha na agenda de treinos das provas de velocidade da natação paralímpica, Wendell Belarmino corre para um refúgio à beira do Lago Paranoá, em Brasília. Lá, veste macacão, capacete, ouve o barulho de um vento mais do que intenso e decola. O jovem de 23 anos é fã de túneis de vento.   

“Eu sou apaixonado. Adoro mesmo. É quase uma terapia. A sensação é bem legal. Tanto de voar quanto de se controlar no ar. Ir para frente, fazer uma curva, ir para trás com movimentos bem curtos, sutis, delicados. Suave mesmo”, descreveu o atleta, que tem menos de 5% da visão preservada em função de um glaucoma congênito .

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Foto: Ale Cabral/ CPB
“Voar me ajuda muito na consciência corporal. Serve para conhecer meu corpo, perceber o meu movimento. O ar é sutil. Na água tudo também é sutil. Se puxo uma braçada e ela não está retinha, se um dedo fica um pouco mais para cima que o outro, o nado não sai bom e vou para um lado ou para o outro. Melhorei muito a questão de sensibilidade e de percepção espacial depois de começar a voar. É incrível”
Wendell Belarmino

Mais do que diversão, a vivência nos túneis de vento se tornou parceira de Wendell na água. O desafio mais complexo da natação em provas para pessoas com deficiência visual é nadar em linha reta. Na categoria de Wendell, a S11, os atletas atuam com óculos de lentes pretas para que nenhum resíduo de luz sirva de vantagem competitiva. Em Tóquio, disputará os 50m livre, 200m medley e o revezamento misto 4 x 100m, a primeira delas já nesta quinta, 26.08, a partir das 21h29 (de Brasília).

Sem referências espaciais, é comum que os atletas se desloquem lateralmente e atinjam as raias que delimitam seu espaço. Além de causar pequenas lesões cotidianas nos treinos em dedos, braços, cabeça, tronco e pernas, o desvio no nado implica no tempo final, fator determinante em provas como os 50m livre e os 100m livre.

“Voar me ajuda muito na consciência corporal. Serve para conhecer meu corpo, perceber o meu movimento. O ar é sutil. Na água tudo também é sutil. Se puxo uma braçada e ela não está retinha, se um dedo fica um pouco mais para cima que o outro, o nado não sai bom e vou para um lado ou para o outro. Melhorei muito a questão de sensibilidade e de percepção espacial depois de começar a voar. É incrível”, comentou o atleta, que conquistou o título dos 50m e a prata nos 100m livre da classe S11 no último Mundial, em 2019, na Inglaterra.

Dilema da apneia

Outro desafio da categoria é a respiração. O ato de virar a cabeça lateralmente para puxar o ar durante as provas costuma ser foco de tensão. “Essa virada da cabeça sempre mexe um pouquinho na direção do nado, dá uma entortada, uma freada. Até para quem enxerga é assim, mas quem tem visão conserta isso de forma natural. Há até quem prefira percorrer os 50m livre em apneia, sem respirar”, explicou o velocista.

Para ele, contudo, a opção da apneia nunca trouxe os melhores resultados. “Já fiz vários testes. Bloqueando ao máximo a respiração, respirando uma ou duas vezes, mas perco rendimento se não respirar a cada dez braçadas. Chego a ser meio segundo melhor assim”, comentou o atleta, que costuma atravessar os 50m livre em 46 viradas de braço.

Mais do que um número de controle de performance, a contabilidade das braçadas na classe S 11 tem a função de indicar a Wendell quando a borda está próxima. Assim ele consegue administrar a energia e dosar a quantidade de esforço necessários para uma boa chegada ou, no caso de provas mais longas, da virada.

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O trabalho do tapper é essencial para bons resultados na S11. Foto: Ale Cabral/ CPB

A sutileza do tapper

A reta final das provas conta, ainda, com o auxílio de um tapper, pessoa que fica na margem, com uma haste de metal com uma bolinha de espuma na ponta para “bater” na cabeça do atleta nos últimos metros. Assim ele tem certeza de que faltam uma ou duas braçadas para tocar a parede.

“Como a marcação do chão da piscina não adianta porque nossos óculos são pretos, conto as braçadas para saber o quanto já nadei. Reto ou não, tento ficar o mais no centro possível. Se vou para um dos lados, tento me manter, me guiando pela boia. Para a virada e a chegada, tem o tapper, a varinha que nos avisa”

“Como a marcação do chão da piscina não adianta porque nossos óculos são pretos, conto as braçadas para saber o quanto já nadei. Reto ou não, tento ficar o mais no centro possível. Se vou para um dos lados, tento me manter nele, me guiando pela boia. Para fazer a virada e a chegada, tem o tapper, a varinha que nos avisa”, detalhou.

A relação com o tapper é uma das mais sensíveis no alto rendimento. Quanto mais há treino e conhecimento entre atleta e a pessoa de fora da piscina, mais chances de que a prova fique “encaixada”, com a chegada justa e sem a perda de milésimos que muitas vezes separam um ouro de um sexto lugar.

“Tem muito o feeling de quem faz. Nos 50m livre de Londres, por exemplo, quando fui campeão mundial, eu tinha combinado uma coisa com meu técnico, mas chegou na hora e ele percebeu que se fizesse o tapa na hora que combinamos, eu não ganharia. Geralmente ele bate, eu termino a braçada que estou dando e chego. Se ele tivesse feito isso, eu deslizaria muito. Ele esperou uma braçada a mais para bater e eu cheguei ‘cravado’. Essa fração de segundo foi decisiva. Fechei em 26s20 e o segundo colocado, em 26s25”, disse.

Embora suficiente para o título mundial, os 26s20 já são passado. Wendell tem na mente um tempo na casa de 25s20, próximo do que já conseguiu registrar em simulações e treinos. “A ideia é tentar nadar para 25 segundos agora. Já cheguei a fazer de forma não oficial. Claro que é difícil prometer, porque 50m livre tem de dar tudo certo. Se alguma coisinha sai errada, por mais que você tenha treinado, a prova já era. No fim das contas, é mais torcer para dar tudo certo do que para os 25s”.

Ídolos e referências

Para buscar em Tóquio uma performance tão consistente quanto a que demonstrou no último Mundial, Wendell se baliza em dois ícones bem sucedidos no mundo olímpico e em outros dois do universo paralímpico: Bruno Fratus e Fernando Scheffer, medalhistas brasileiros nos Jogos Olímpicos, e Daniel Dias e Phelipe Rodrigues, ícones da natação paralímpica.

“Gosto de me inspirar no resultado das pessoas. Eu fiquei super motivado e animado tanto com os resultados do Fratus (bronze nos 50m livre) quanto do Scheffer (bronze nos 200m livre). Eu acompanhei em casa e fiquei com a sensação de que precisava mesmo vir para Tóquio. Aquilo me deu ânimo novo, um gás, a sensação de que ‘vai dar bom’”, relatou.

“Eu me inspiro também no Daniel Dias. Não tem como falar de natação paralímpica e não falar dele. É um cara incrível, sabe? Desde a minha primeira convocação, em 2019, sempre foi amigo, deu conselhos, botou minha moral para cima”, listou, em referência ao dono de 25 medalhas paralímpicas, 14 delas de ouro. “O Phelipe também, pelas provas que nada, de velocidade, como a minha, e por estar sempre nos pódios. É um parceiro”.

Se mira o pódio como resultado, Wendell não curte holofotes e nem se cobra demais. Prefere trabalhar nos bastidores, se possível em raias menos badaladas do que a 4 e a 5, as centrais da piscina. “Confesso que não gosto de nadar nas raias do meio. Primeiro porque você tem pouco tempo para se arrumar para a largada, porque são os últimos atletas a entrar para a piscina. Segundo porque está todo mundo olhando para você. Para mim, quanto menos olharem para mim, melhor. Deixa para olhar depois”.  

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Há situações em que o atleta da classe S11 só conhece o resultado na saída da piscina. Foto: Ale Cabral/ CPB

Resultado com “delay”

"Quando bati na borda, não tinha ideia do resultado. Só quando estava saindo da piscina, perguntei: ‘Como foi?’. E ali que descobri que eu tinha vencido”

Esse “olhar depois”, aliás, é outra das marcas que definem a natação para atletas da classe S11. Em praticamente todas as outras classes, bater na borda e virar para o placar é o ato que define a emoção de um atleta com seu resultado. Na Classe 11, muitas vezes o resultado só é descoberto por eles na saída da piscina.

“Na prova mesmo do Mundial foi assim. Eu tinha feito o sexto ou sétimo tempo na eliminatória. Não tinha expectativa de pódio. Só tinha na cabeça as dicas dos treinadores: consertar a saída, chegar forte, não deixar desacelerar o nado num ponto, focar no ajuste da braçada em outra parte. Tentei fazer tudo. Quando bati na borda, não tinha ideia do resultado. Só quando estava saindo da piscina, perguntei: ‘Como foi?’. E ali que descobri que eu tinha vencido”, disse, entre sorrisos.

Tratar a sua trajetória com leveza e lazer, aliás, é marca de Wendell.  “Sempre costumo pensar que a competição é onde me divirto. O chato do esporte é ter de treinar tanto. Mas, se a gente for bem prático, o nosso esporte é como brincadeira de criança, aquela de ver quem atravessa a piscina mais rápido. Só que isso elevado a patamar de profissão. Estou aqui para fazer o que tiver de ser feito, dar o melhor, mas sem me pressionar, sendo capaz de me divertir”. A comemoração? "Ah, podem me esperar para voar nos dias 7, 8, 9 e 10 de setembro", avisou. 

Investimento
Dos 36 convocados para a seleção brasileira de natação paralímpica em Tóquio, 32 são atualmente contemplados pelo Bolsa Atleta, programa de patrocínio individual do Governo Federal Brasileiro. O investimento direto nesse grupo, no ciclo entre os Jogos Rio 2016 e Tóquio 2021, foi de R$ 12,9 milhões, garantido via Secretaria Especial do Esporte do Ministério da Cidadania.

Dos 32 bolsistas, 29 integram a categoria Pódio, a principal do programa, voltada para quem se qualifica entre os 20 melhores do mundo em sua modalidade. A categoria Pódio prevê repasses que variam de R$ 5 mil a R$ 15 mil mensais de acordo com os resultados esportivos dos atletas. Wendell é um deles

“Para mim é algo que me dá tranquilidade, a tranquilidade der ter aquele dinheiro não só para um suplemento de que precisa, um material de competição, mas para me dar a condição de viver exclusivamente do esporte. É um benefício que é como um salário. Durante a pandemia, aliás, se não fosse a bolsa, provavelmente eu teria parado de nadar e teria ido procurar um emprego. Graças à Bolsa consegui me manter, ajudar minha família, seguir competitivo e manter minha equipe multidisciplinar”, disse Wendell, integrante da categoria Pódio.

No ciclo dos Jogos de Tóquio, o Ministério da Cidadania investiu R$ 28,38 milhões na natação paralímpica por meio do Bolsa Atleta. Entre 2017 e 2021, foram concedidas 986 bolsas em todas as categorias para os atletas da modalidade.

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Wendell é integrante da categoria Pódio, a principal do Bolsa Atleta. Foto: Ale Cabral/ CPB

Classificação

As categorias da natação paralímpica têm início com a letra S (swimming). Para a definição da classe física, o nadador é avaliado por testes motores, de força muscular e mobilidade articular. Os atletas com deficiência visual são submetidos a exames para verificação da acuidade visual e entram em uma das três classes disponíveis: S11 para cego total, S12 e S13 para baixa visão. Nas classes de 1 a 10, quanto maior o grau de comprometimento, menor o número da classe. A classe 14 é para atletas com deficiência intelectual.

Gustavo Cunha, de Tóquio, no Japão – rededoesporte.gov.br