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Atletismo

29/07/2021 16h06

Ginástica Artística

Rebeca Andrade transforma ciclo de lesões na primeira medalha olímpica da ginástica feminina

Atleta de 22 anos foi vice-campeã do individual geral em Tóquio. A prova define a ginasta mais completa da modalidade

Se um roteirista chegasse a um produtor de Hollywood com uma proposta de filme para narrar a história que Rebeca Andrade protagonizou na noite desta quinta (29.07), em Tóquio, possivelmente seria reprovado por "inverossimilhança", por forçar a barra, por se desconectar da realidade.

Ouviria isso porque não faria sentido sustentar um argumento de que a segunda ginasta mais completa de uma edição de Jogos Olímpicos é uma menina de 22 anos que passou por três cirurgias para recompor o ligamento cruzado do joelho nos últimos cinco anos, cada uma delas com recuperações de seis, nove meses. Não convence porque não combina com performance de alto rendimento. Ninguém levaria a sério.

Rebeca com a prata conquistada na prova do individual geral: ainda compete no salto e no solo. Foto: Ricardo Bufolin/CBG

Viriam, no automático, uma série de perguntas ao roteirista: como alguém com esse retrospecto de saúde acumularia 57.298 pontos na soma de salto, barras assimétricas, trave e solo? Como ficaria atrás apenas de uma americana chamada Sunisa Lee, com 57.433, e à frente de uma russa, Angelina Melnikova (57.199)? Ouviria que é exagero insistir na tese de que essa medalha seria inédita na história da ginástica feminina do país dela. E de que seria a primeira vez em 15 anos que o pódio teria uma atleta que não fosse americana, russa ou chinesa. Como assim?

O produtor perderia a paciência quando lesse ainda que a tal prova seria marcada pela desistência de uma das melhores atletas da modalidade em todos os tempos, uma tal Simone Biles. Alguém insuperável, imbatível, mas que resolveu se afastar do páreo na última hora para privilegiar os cuidados com a saúde mental.

"Eu passei por muita coisa, gente. Por isso coloquei essa Olimpíada como objetivo. Eu queria fazer o melhor aqui. Brilhar da melhor maneira possível. Acho que brilhei. Consegui nossa primeira medalha, e penso que todas as pessoas que já passaram pela ginástica feminina no Brasil devem se ver nela. Só estou continuando, dando um passo para a nossa geração, e espero que as próximas consigam isso e muito mais"

Sobrariam, adicionalmente, críticas à origem, ao processo de formação da atleta e ao contexto da competição. Cresceu numa família com outros seis irmãos numa cidade periférica? Passa do ponto! A mãe, Dona Rosa, optava por se deslocar a pé para o trabalho como empregada doméstica para deixar o dinheiro da condução para a filha treinar? Forçado! O irmão mais velho se virou para arrumar uma bicicleta alugada para levar Rebeca na garupa aos treinos? Irreal! A menina sai de casa com apenas nove anos para treinar em uma estrutura com mais recursos? Não cola! E por último: a tal atleta só teve a chance de estar nos Jogos Olímpicos porque eles foram adiados em um ano diante de uma pandemia que atingiu toda a humanidade? Aí, de fato, passaria dos limites.

Felizmente para Rebeca e para a ginástica artística feminina brasileira, há roteiros que não precisam da mediação de grandes estúdios para serem veiculados. "Peraí, gente, a minha mãe está ligando... Mãe, só um minutinho que vou dar entrevista aqui e já ligo para a senhora", disse a ginasta, no primeiro contato com vários jornalistas assim que conquistou, de fato, a prata no Ginásio de Ariaki, na capital japonesa.

"Eu passei por muita coisa, gente. Por isso coloquei essa Olimpíada como objetivo. Eu queria fazer o melhor aqui. Brilhar da melhor maneira possível. Acho que brilhei. Consegui nossa primeira medalha, e penso que todas as pessoas que já passaram pela ginástica feminina no Brasil devem se ver nela. Só estou continuando, dando um passo para nossa geração, e espero que as próximas consigam isso e muito mais".

Foto: Ricardo Bufolin/CBG

Insistir e persistir

Rebeca não nega que pensou em desistir. A cada cirurgia, a cada processo de fisioterapia e reabilitação, a cada competição importante perdida, pairava a sensação de que estava estagnada enquanto as outras melhoravam. "É complicado, porque além das três operações no joelho, tive uma em cada pé. Até hoje tenho dificuldade para dobrar completamente um dos joelhos. Mas as pessoas ao seu lado te moldam, te mudam. Tive ajuda, suporte, incentivo de uma equipe multidisciplinar para continuar", explicou Rebeca.

Nessa trilha, a preparação psicológica, segundo ela, fez toda a diferença para que ela tivesse a capacidade de fazer as quatro séries com consistência e apuro técnico. A exceção foram duas pisadas fora das linhas que delimitam o exercício de solo, o último que ela disputou.

"Eu tive acompanhamento psicológico desde os 13 anos e, do ano passado para cá, consegui colocar isso em prática para não ficar nervosa, para não perder o controle. Fazer na competição tudo o que fazia no treino. No fim das contas, a pandemia foi incrível para mim em alguns aspectos Tanto pelo processo do joelho, que me deu a possibilidade de recuperação e de estar nos Jogos Olímpicos, quanto para o meu psicológico. Aprendi a me enxergar, a me conhecer melhor. Eu me conectei comigo e a gente vê o resultado disso".

Estrutura e investimento

O Brasil experimenta nos últimos 20 anos uma ascensão significativa na modalidade, com resultados expressivos conquistados pelos atletas nacionais em torneios continentais, em etapas da Copa do Mundo, em mundiais e em Jogos Olímpicos. Essa ascensão foi acompanhada de investimentos do Governo Federal e o patrocínio de estatais para garantir viagens, treinamentos e a equipagem de 16 centros de treinamento no país.

Os sete integrantes da seleção de ginástica artística classificados para Tóquio fazem parte do Bolsa Atleta, programa de patrocínio individual do Governo Federal Brasileiro. Seis deles, incluindo Rebeca, pertencem à categoria Pódio, a principal do programa, voltada para atletas que se posicionam entre os 20 melhores do mundo em suas modalidades. No ciclo entre os Jogos Rio 2016 e Tóquio 2021, a ginástica artística recebeu do Governo Federal investimento direto de R$ 7 milhões via Bolsa Atleta, recursos que propiciaram a concessão de 256 bolsas.

"É muito bom quando você tem o apoio, pessoas que estão por trás te dando suporte. Tive isso com as pessoas mesmo. Viram que eu tinha talento, futuro, e quiseram investir em mim. O esporte muda vidas, dá educação, inteligência, sabedoria, você cresce, vira um ser humano melhor"

Parceria e incentivo

Nessa trilha, segundo Rebeca, o treinador Francisco Porath, que a acompanha desde quando era criança, teve papel fundamental. "Ele me conhece desde sempre, me entende, sabe do que preciso, como preciso, me guia, orienta, acredita. Segurou todas as barras comigo no período das lesões e me transformou na melhor atleta/pessoa que posso ser", afirmou Rebeca. 

"Eu acho que cada lesão dela foi um capítulo da nossa história e por várias vezes ela pensou em desistir. Nas duas primeiras a família ajudou e a gente conseguiu convencê-la. Na terceira, eu não aguentei. Eu não tinha mais argumentos. Então, acho que a história ficou mais bonita porque foi ela que me ligou e falou: 'vou fazer essa cirurgia. Já sei o que preciso fazer para me recuperar e  vou tentar'. Isso, para mim, foi sensacional. Fizemos todos os ajustes que precisávamos para ela voltar à alta performance", relatou o treinador de Rebeca. A ginasta começou a praticar a modalidade aos seis anos, em um projeto social em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo. Rapidamente, chamou a atenção por uma mistura de força, coordenação motora e agilidade.

"É muito bom quando você tem apoio, pessoas que estão por trás te dando suporte. Tive isso com as pessoas mesmo. Viram que eu tinha talento, um futuro, e quiseram investir em mim. O que acho é que podem fazer isso por mais pessoas, por mais crianças, que tenham sonhos, objetivos, capacidade. O esporte muda vidas, dá educação, inteligência, sabedoria, você cresce, vira um ser humano melhor", comentou, na esperança de ser vista como espelho para novos potenciais praticantes.

"Eu acho que cada lesão dela foi um capítulo da nossa história e por várias vezes ela pensou em desistir. Nas duas primeiras a família ajudou e a gente conseguiu convencê-la. Na terceira, eu não aguentei. Eu não tinha mais argumentos. Então, acho que a história ficou mais bonita porque foi ela que me ligou e falou: 'vou fazer essa cirurgia. Já sei o que preciso fazer para me recuperar e  vou tentar'. Isso, para mim, foi sensacional"
Franscisco Porath, técnico de Rebeca

Funk e mel

Uma das marcas recentes da presença de Rebeca no circuito internacional tem sido a série de solo em que um trecho da movimentação é feito ao som de Baile de Favela, de MC João. O ritmo, a dança que acompanha as acrobacias e a representatividade da cultura popular se encaixaram, segundo a atleta, com as vivências dela.  

"O funk é um dos estilos mais escutados no Brasil. Eu gosto muito de funk, adoro dançar, e dá orgulho mesmo ver que bastante gente gostou, que tem causado essa repercussão toda. Vem sendo incrível", comentou Rebeca. "A ideia original não foi minha, foi uma surpresa do meu coreógrafo. No início estranhei, porque eu estava saindo de uma série com música da Beyoncé, que amo, mas depois que me acostumei, a música é minha cara, não tem como negar. Deu super match e está sendo esse sucesso", brincou a ginasta, que também enxerga ingredientes de representatividade na série e em sua conquista.

"Eu sou preta e espero representar com o meu trabalho pretos, brancos, pardos, verdes, azuis, amarelos. É um orgulho. No esporte você pode representar todo mundo. As pessoas querem ser como você, parecidas com você. Acredito que eu tenha feito isso hoje, trazendo minha música para cá e tudo o que fiz neste ciclo", comentou a ginasta, que ainda disputa em Tóquio as finais do salto e do solo.

Se o funk é o ritmo do solo, o gospel é a trilha que Rebeca entende como simbólica para embalar a conquista dela na capital japonesa. Na letra da música Sabor de Mel, ela enxerga alguns dos ingredientes que melhor traduzem sua caminhada. "Você é o escolhido, a sua história não acaba aqui. Você pode estar chorando agora, mas amanhã você irá sorrir", citou. "E há um trecho que fala que vão ver Jesus brilhando em você. É o que acho que todos estão vendo. Sou grata pela minha fé, por esse lado espiritual, pela minha família, pelo meu treinador. Nas três vezes em que me machuquei, eu disse que não queria mais, mas voltei e voltei melhor. Essa vitória tem, sim, sabor de mel", concluiu.

Rebeca ao lado de Francisco Porath, técnico, mentor e amigo de Rebeca durante toda a sua caminhada. Foto: Ricardo Bufolin/CBG

Orgulho entre pioneiros

Os tons da conquista de Rebeca encontraram eco imediato em representantes históricos da modalidade no Brasil. O choro emocionado de Daiane dos Santos, campeã mundial no solo em 2003, vencedora de nove etapas da Copa do Mundo e que representou o país nos Jogos de Atenas (2004), Pequim (2008) e Londres (2012), foi a síntese mais imediata do quanto a conquista de Rebeca foi significativa.

"Agradeço a menção que ela faz à história da ginástica. Uma medalha não é um resultado exclusivo do atleta, não se faz da noite para o dia. São anos e muitas pessoas e entidades que participam dessa construção"
Luisa Parente, presente nos Jogos de 1988, em Seul, e de Barcelona, em 1992

Outra pioneira da participação brasileira em Jogos Olímpicos na ginástica artística, Luisa Parente celebrou bastante a conquista. Ela esteve nas edições de 1988, em Seul, na Coreia do Sul, e em Barcelona, na Espanha, quatro anos depois. Para ela, o gesto de Rebeca ao ressaltar os precursores da modalidade traz à tona a multiplicidade de fatores necessários à formação de um atleta.

"Eu fiquei feliz demais. Era o dia dela, uma medalha que faltava, e mais feliz ainda de perceber que outras podem vir na sequência ainda nesses jogos, se ela permanecer nesse patamar", disse Luisa Parente, hoje secretária da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD). "Agradeço a menção que ela faz à história da ginástica. Uma medalha não é um resultado exclusivo do atleta, não se faz da noite para o dia. São anos e muitas pessoas e entidades que participam dessa construção", comentou.

Já Mosiah Rodrigues foi cinco vezes medalhista em Jogos Pan-Americanos e esteve nos Jogos Olímpicos de Atenas (2004). Ele recordou marcos importantes da modalidade, como a primeira medalha no circuito internacional, conquistada por Daniele Hypolito em 2001, o título mundial de Daiane dos Santos em 2003 e figuras que abriram portas para o crescimento da ginástica artística, como a própria Luisa Parente e Soraya Carvalho, que se classificou para os Jogos de Atlanta (1996) mas não viajou por lesão.

"É até difícil traduzir em palavras o feito da Rebeca. A gente vai conseguir mensurar melhor com o passar dos dias, mas estamos diante da atleta mais completa da história do país. São quatro competições em uma", ressaltou Mosiah, coordenador geral do Bolsa Atleta na Secretaria Especial do Esporte do Ministério da Cidadania. "Acho que essa medalha retrata a continuidade da consolidação de uma história da elevação do padrão de qualidade da ginástica, feminina e masculina. Não existe mais Brasil participando de competições, mas brigando de igual para igual".

No masculino, o Brasil contabiliza quatro medalhas olímpicas. Uma de ouro e uma de prata com Arthur Zanetti nas argolas, conquistadas nas edições de Londres (2012) e do Rio de Janeiro (2016), e uma prata e um bronze no solo, com Diego Hypolito e Arthur Nory em 2016.

Gustavo Cunha, de Tóquio, no Japão - rededoesporte.gov.br