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Vela

03/08/2021 09h18

VELA

Ouro em Tóquio, Martine Grael e Kahena Kunze fazem história e entram para o seleto clube dos bicampeões olímpicos do Brasil

Campeãs nos Jogos Rio 2016, as duas repetem o feito no Japão e, com isso, se tornam a 14ª e a 15ª atletas nacionais na história a conquistar dois títulos olímpicos

Em termos percentuais, o número 15, em um universo de 213 milhões, a população do Brasil, de acordo com o censo mais recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), representa algo que a matemática aponta como sendo próximo a zero. Precisamente igual a 0,00000704%.

Fica claro que ser bicampeão olímpico no Brasil é algo raríssimo. Tanto é verdade que até a 0h55 de Brasília, 12h50 de uma terça-feira (03.08) quente e úmida em Enoshima, distante cerca de 50 quilômetros de Tóquio, o país contabilizava apenas 13 bicampeões.

A alegria do pódio: Martine e Kahena comemora a conquista do bicampeonato olímpico em Enoshima. Foto: Jonne Roriz/COB
“É uma honra estar com nomes tão incríveis do esporte e que fizeram história. Ainda não caiu a ficha. Estamos sendo comparadas a pessoas muito especiais”
Kahena Kunze, velejadora e bicampeã olímpica

Foi neste horário que as portas de um dos clubes mais seletos do Brasil se abriram para as velejadoras Martine Grael e Kahena Kunze. Ao cruzarem a linha de chegada da medal race da classe 49er FX em terceiro, as duas repetiram o resultado dos Jogos Olímpicos Rio 2016 e, nas Olimpíadas de Tóquio, conquistaram a segunda medalha de ouro da carreira e a terceira medalha dourada para o país no Japão, igualando o feito do surfista Ítalo Ferreira e da ginasta Rebeca Andrade.

Com isso, Martine e Kahena fizeram por merecer o cartão de sócias-vitalícias do clube dos bicampeões olímpicos brasileiros. Elas se juntam ao time estelar do qual fazem parte o pai de Martine, Torben Grael, Marcelo Ferreira e Robert Scheidt, todos ícones da vela mundial; o saltador Adhemar Ferreira da Silva, e os jogadores de vôlei Giovane, Serginho, Maurício, Paula Pequeno, Jaqueline, Fabiana, Sheilla, Thaisa e Fabi.

E vale uma ressalva. Dos 15 bicampeões, menos da metade havia conseguido duas medalhas douradas em duas edições seguidas. Antes delas, era um feito atingido por Adhemar Ferreira da Silva, no salto triplo, em Helsinque 1952 e Melbourne 1956, e pelas meninas do vôlei, que triunfaram em Pequim 2008 e Londres 2021.

Tradição nos mares

A medalha de Martine Grael e Kahena Kunze foi a 19ª da vela brasileira em Jogos Olímpicos. A modalidade é a que mais ouros conquistou para o Brasil em toda a história, com oito, além de três de prata e oito de bronze.

“É uma honra estar ao lado de nomes tão incríveis do esporte e que fizeram história. Ainda não caiu a ficha”, confessa Kahena. “Estamos sendo comparadas a pessoas muito especiais. E tem o Torben e o Scheidt aqui”, continua a velejadora. 

“Acho que isso é mais emocionante ainda, porque para mim eles são ídolos, o da Ka e o meu”, emenda Martine. “Os dois são meus ídolos e acho que tê-los aqui e a gente ser bicampeãs olímpicas é incrível, é indescritível”, prossegue a filha de Torben Grael.

Para ela, o sucesso da dupla não vem do fato de serem tidas como um fenômeno da vela. Martine credita os dois ouros a dois ingredientes: trabalho e dedicação. “Em relação a resultados, você olha e diz: ‘Uau!’ Mas a gente colocou muita dedicação em todos esses anos. A gente não fez nada pela metade. Eu tenho isso como algo de muito valor. Mas ser um considerada um fenômeno eu acho que não”, diz Martine.

“Isso não aconteceu por acaso. Elas trabalham muito”, ressalta Torben. “As pessoas não acompanham, não se dão conta, mas elas passam horas treinando. E isso rende. Obviamente, elas têm um controle emocional muito bom sob pressão e têm talento. Isso ajuda, mas tem muito trabalho aí”, prossegue o chefe da equipe brasileira de vela em Tóquio.

Foto: Jonne Roriz/COB
“É trabalho. São muitas horas treinando. Meus pais sempre me apoiaram em tudo. Mas o resto é só treino. É muito treino e muitos erros para a gente conseguir acertar”
Martine Grael, velejadora e bicampeã olímpica

A importância do apoio

Integrantes do Bolsa Atleta na categoria Bolsa Pódio, a mais alta do programa de patrocínio do Governo Federal, e apoiadas durante todo o ciclo olímpico para Tóquio, Martine e Kahena são categóricas quando falam sobre a importância do benefício em suas carreiras e na de todos os outros atletas.

“Realmente, depois do Rio, até para a gente que ganhou a medalha de ouro, tivemos poucos patrocínios que ficaram. O Governo Federal, com o Bolsa Atleta, esteve presente antes,  depois e durante o nosso crescimento, quando a gente estava ali, ainda sem resultado”, lembra Martine.

“Desde as categorias mais baixas até as mais altas, acho que é muito  importante para os atletas do Brasil. É muito difícil conseguir patrocínio para as pessoas que já vão bem, então imagina para quem está começando. Eu acho que a gente receber esse apoio quando a gente começou a fazer a campanha (olímpica) foi muito importante”, continua a bicampeã.

Investimentos federais

No ciclo entre os Jogos Rio 2016 e Tóquio 2021, a vela recebeu investimento direto do Governo Federal, via Bolsa Atleta, de R$ 5,7 milhões, suficientes para custear a concessão de 153 bolsas para praticantes da modalidade que se destacaram nos cenários de base, nacional e internacional.

Para Martine, o valor do apoio ficou ainda mais ressaltado durante o período da pandemia, que praticamente deixou o esporte mundial inoperante em 2020. “Sem dúvida, o Bolsa Atleta tem ajudado bastante os atletas, até a passar por essa pandemia, porque ficou bem instável o futuro de patrocínio. É muito difícil atingir resultado sem apoio”, afirma a velejadora.

Sob controle

Há cinco anos, quando disputaram a medal race na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, Martine e Kahena protagonizaram uma conquista dramática, concretizada nos últimos metros. O ouro veio com um triunfo sobre a dupla da Nova Zelândia formada por Alex Maloney e Molly Meech, com apenas dois segundos de diferença entre os barcos. Desta vez, a disputa foi menos intensa.

As brasileiras iniciaram a medal race em Enoshima empatadas na primeira posição com as holandesas Annemiek Bekkering e Annette Duetz, sétimas colocadas no Rio 2016. Ambos os times tinham 70 pontos perdidos nas regatas classificatórias.

Foto: Jonne Roriz/COB
“O Governo Federal, com o Bolsa Atleta, foi um apoio que não foi só antes da Olimpíada, foi o antes e depois, e durante o nosso crescimento, quando a gente estava ali, ainda sem resultado”
Martine Grael

Em terceiro, com 73 pontos perdidos, estavam as alemãs Tina Lutz e Susann Beucke e um pouco atrás, com 77 pontos perdidos, apareciam as espanholas Tamara Echegoyen Dominguez e Paula Barcelo Martin.

Desde o início da regata, Martine e Kahena, que se descolaram dos outros barcos na largada, sempre estiveram entre os primeiros barcos. E ao cruzarem a linha de chegada na terceira colocação, à frente das rivais da Holanda, Alemanha e Espanha, asseguraram o ouro. As alemãs terminaram com a prata e as holandesas, com o bronze.

“Eu dei uma olhada no píer onde o pessoal estava torcendo, antes da gente descer com o barco, e vi que tem uma diferença de corrente bem grande. Eu sou do Rio, de Niterói, conheço bem a baía de Guanabara, e sabemos que uma diferença de corrente favorece um lado ou outro”, revela Martine.

“A gente não tinha uma estratégia certa de um lado ou outro, ia depender de como as adversárias estariam. Mas a gente queria largar livre para poder velejar. Conseguimos dar uma largada apertada no início, posicionamos na linha poucos segundos depois da largada, mas conseguimos ir bem livre na direita e acho que ter ido rápido e livre foi a chave hoje, porque estava com pouco vento e se você fica no bolo acaba não tendo muito o que fazer”, continuou a velejadora.

“A gente não começou bem a semana, mas fomos indo, batalhando a cada regata, e mostramos que conseguimos chegar ao objetivo", completa Kahena, que durante a primeira entrevista falou pouco, porque estava preocupada com a medal race da classe 49er FX masculina, onde seu namorado, o espanhol Iago Marra, tentava chegar à medalha. A Espanha, entretanto, acabou fora do pódio.

Enquanto Kahena torcia, Martine contou que o adiamento da disputa por falta de vento na segunda-feira (02.08) a permitiu relaxar um pouco mais e até mesmo puxar um pouco de energia positiva que veio lá do outro lado do mundo, de Niterói (RJ), onde ela nasceu, em 12 de fevereiro de 1991.

“Eu queria mandar um abraço para os meus tios, que estavam torcendo pra caramba. A galera lá em Niterói mandou vários vídeos. Eu estava meio assim de abrir as mensagens, mas como a gente teve um dia a mais até o frio na barriga passou. Ontem à noite eu falei: cara, cansei de ter frio na barriga. Aí ontem eu vi todas as mensagens. Foi legal. Foram muitas e todo mundo torcendo lá”, diz a bicampeã.

Navegar é preciso

Juntos, os Schmidt Grael formam a geração mais vitoriosa da vela brasileira e uma das famílias mais bem-sucedidas do esporte olímpico em geral. Torben é dono de cinco medalhas nos Jogos. Foi ouro em Atlanta 1996 e Atenas 2004, prata em Los Angeles 1994 e bronze em Seul 1988 e Sydney 2000.

O tio de Martine, Lars Grael, irmão de Torben, tem em sua galeria os bronzes em Seul 1988 e Atlanta 1996. E, agora, Martine engrandece a galeria com mais um ouro. Ao todo, são nove medalhas olímpicas. A família ainda conta com Marco Grael, irmão de Martine e campeão dos Jogos Pan-Americanos de Lima 2019 e que disputou os Jogos Rio 2016 e, em Tóquio, competiu na 49er, terminando na 16ª posição.

Foto: Jonne Roriz/COB

Nas redes sociais há todo tipo de comentário sobre o sucesso dos Grael. Um dos mais espirituosos brincou ao dizer que quando um bebê Grael nasce, ele é colocado em um barco sozinho no meio do mar. Se o bebê voltar ele pode dizer que pertence à família.

“É trabalho. São horas treinando. Eu acho que a cultura náutica na nossa família é forte e tem o prazer de fazer. Eu acho que o que passa de geração para geração é o prazer e a segurança familiar, que acho que é muito importante. Meus pais sempre me apoiaram em tudo. Mas o resto eu acho que é só treino. É muito treino e muitos erros para a gente conseguir acertar”, explica Martine.

“A vela é um esporte muito legal. É normal que a pessoa que está acompanhando acabe curtindo. Ou então a pessoa não gosta de esporte mesmo e aí é outra coisa”, diz Torben. “Mas como eles vão acompanhando a gente num cruzeiro, num passeio, acabam se conectando também. Aí a parte de competição é pessoal. Tem gente que gosta de competir e tem gente que não curte. Eu acho que elas acabaram puxando essa parte da competição, curtindo competir, até mesmo porque foi um grupo grande de jovens que começou junto, dos quais tem quatro deles competindo aqui: a Gabi (Gabriela Nicolino), o Marco e elas duas (Kahena e Martine). Acho que isso também ajuda muito”, continua o bicampeão.

Há uma frase famosa que tradicionalmente carrega um significado marcante para todos aqueles que se dedicam às atividades no mar:

Navegar é preciso.

Cunhada pelo general Pompeu, por volta de 70 a.C, e tendo se popularizado pelo poeta português Fernando Pessoa, essas palavras, hoje, resumem bem a história de Martine Grael e Kahena Kunze, que voltaram a encher o país de orgulho cinco anos depois do ouro no Rio 2016.

As duas deixaram em aberto se irão ou não encarar outro ciclo olímpico e iniciar todo o trabalho em busca de um terceiro título em Paris 2024. Por ora, só querem curtir o ouro conquistado em Tóquio e merecidas férias. Afinal, ao contrário do que disse Pompeu no complemento da frase citada acima, viver é preciso.

Luiz Roberto Magalhães, de Tóquio, no Japão – rededoesporte.gov.br