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12/03/2018 08h45

Jogos Paralímpicos de Inverno

O portão que travou o caminho de André Cintra

Problema técnico atrasa a prova em quase uma hora justo na vez da descida do brasileiro, que acaba eliminado nas oitavas de final do snowboard cross. Ouro foi do americano Mike Schultz

Nos últimos quatro anos, André Cintra se preparou para uma lista de situações para chegar pronto aos Jogos Paralímpicos de Inverno da Coreia do Sul. Estudou o que podia melhorar em relação ao 28º lugar da prova em Sochi, na Rússia, em 2014. Trabalhou no encaixe mais conveniente de sua prótese com a prancha de snowboard. Lapidou a técnica para ganhar velocidade nas curvas. Estudou as linhas mais adequadas em diversos percursos. Trabalhou a parte física. Avaliou adversários. Melhorou sua performance nas rampas. Fez tudo isso, mas acabou derrotado, em PyeongChang por um rival improvável: um problema técnico.

André decola durante a prova disputada no Centro Alpino de Jeongseon. Foto: Marcio Rodrigues/MPIX/CPB

O portão de largada da prova do snowboard cross já tinha rateado em duas situações ao longo do dia no Centro Alpino de Jeongseon. Em vez de baixar ao mesmo tempo para os dois competidores saírem juntos na fase de mata-mata, abria só um dos lados. Como a descida é íngreme, acabava que o atleta com portão aberto era obrigado a seguir até o fim do percurso. Ganhava, assim, uma preciosa chance a mais de testar o trajeto, enquanto o outro aguardava o adversário descer os 925 metros de curvas e rampas, pegar carona num trenó e subir de volta os 202 metros que separam a área de largada da chegada.

"Eu estava ali antes disso absolutamente concentrado. Estava fazendo a linha de percurso dentro da cabeça, pensando como fazer cada curva, lembrando que queria corrigir um erro da primeira descida. Essa prova demora um minuto. E aí tive de ficar nessa de vou, não vou, e tudo foi embora"
André Cintra

Nas duas situações iniciais, a máquina que permite o acionamento do mecanismo foi trocada e a competição seguiu normalmente. No momento da descida do brasileiro, no entanto, a pane foi maior. "Trocaram umas cinco, seis vezes, e nada funcionava. Até que alguém sugeriu improvisar a largada com um elástico e começou uma enorme confusão. Uns dizendo que não podia, outros dizendo que sim. Todos tentando se entender. Falaram em cancelar a prova", afirmou André. "Aí você fica numa situação chata: põe a prancha, tira a prancha, vai e não vai. A concentração vai embora".

Quando finalmente decidiram que iam mesmo na base do elástico, quase uma hora depois, André afirmou ter perdido o foco. De fato, na primeira curva da disputa com o japonês Oguri Daichi, o brasileiro derrapou, caiu lentamente e perdeu segundos que definiram sua eliminação. "Eu estava ali antes disso absolutamente concentrado. Nem olhava os outros. Estava fazendo a linha de percurso dentro da cabeça, pensando em fazer de tal jeito as curvas, lembrando que queria corrigir um erro da primeira descida. Essa é uma prova que demora um minuto. Menos de um para os melhores. E aí tive de ficar nessa de vou, não vou, e tudo foi embora", lamentou o brasileiro.

Segundo Ryan Rausch, técnico de André, a solução alternativa de usar um elástico para dar a partida foi vista com ceticismo por muitos treinadores, mas a organização do evento informou que ou eles topavam o improviso ou não haveria medalhas na modalidade, porque não haveria chance de reagendar o evento. "Nos deram um ou dois minutos para decidir, e acabamos por optar por continuar do jeito sugerido porque sabíamos que seria melhor para todos os atletas que treinaram duro nos últimos quatro anos", disse.

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"Tecnologia é ótimo quando funciona, mas não foi o caso hoje. Você não tem condições de antecipar quando algo não vai funcionar, mas o timing foi horrível. Com uma parada desse tipo, fica difícil manter o aquecimento físico e o foco. O André até teve uma boa largada e tinha chance de assumir a liderança, mas perdeu isso na primeira curva, com a queda", disse o treinador.

Na fase de classificação, André fez uma descida que definiu como razoável. Ficou em décimo lugar entre os 13 atletas inscritos na classe L11, para atletas com deficiência na perna e amputações acima do joelho. "Não fiz o melhor tempo, mas fiz um tempo bom, razoável. Dava para melhorar? Claro que dava", avaliou o atleta, que precisou amputar a perna direita acima do joelho como consequência de um acidente de moto. André ainda tem pela frente, em PyeongChang, a prova de Banked Slalom, em que os atletas fazem a descida contornando bandeiras azuis e vermelhas ao longo do circuito. Será na sexta-feira, dia 16.

O americano Noah Elliot, medalha de bronze em PyeongChang, usa prótese na perna produzida pela empresa do campeão, Mike Schultz. Foto: Simon Bruty/OIS/IOC

A volta por cima de Schultz

A medalha de ouro na prova ficou com o americano Mike Schultz, de 36 anos. Foi o melhor resultado da carreira dele no snowboard. Até então, o ponto alto de sua trajetória havia sido uma prata no Mundial disputado em 2017, no Canadá, na categoria Banked Slalom.

Na decisão, Schultz superou o holandês Chris Vos, que tem no currículo quatro ouros em mundiais de snowboard paralímpico, dois no cross e dois no banked slalom, conquistados nas edições de 2015, na Espanha, e de 2017, no Canadá. O bronze também ficou com os Estados Unidos, com Noah Elliott.

É um sentimento incrível. Trabalhei muito duro para isso nos últimos três anos e meio. As descidas certas vieram na hora certa. Na fase final não há espaço para erros"
Mike Schultz

A trajetória de Schultz foi de recuperação. Na fase classificatória, ele vinha muito rápido mas caiu, perdeu alguns segundos e acabou na quinta posição. "Isso fez com que eu tivesse um confronto precoce no mata-mata com meu colega de time Mark Mann. Acabou que ganhei, ganhei de novo nas fases seguintes e consegui um ouro para os Estados Unidos. É um sentimento incrível. Eu trabalhei muito duro para isso nos últimos três anos e meio e fiz um ótimo trabalho. As descidas certas vieram na hora certa, porque nessa fase final não há espaço para erros", afirmou o atleta.

Schultz era piloto de motos adaptadas para a neve, o snocross. Chegou a ganhar medalhas de ouro em motos adaptadas tanto no X Games quanto no Winter X Games. Em dezembro de 2008, contudo, a moto que ele dirigia numa competição virou de lado após o salto numa rampa e caiu em cima de sua perna esquerda. Ele sofreu múltiplas fraturas e, depois de várias cirurgias, a perna precisou ser amputada acima de seu joelho. 

Após esse episódio, ele criou uma empresa para desenvolver próteses específicas para a prática de esportes. Sua relação com o snowboard vem exatamente dessa iniciativa. Ele queria testar na prática as próteses que fabricava. Tendo por base o resultado dele e de alguns parceiros dele no time americano que também usam próteses que ele fabrica, a firma está no caminho certo.  

"Tudo isso é incrível. A principal razão de eu ter entrado para o snowboard foi desenvolver esses equipamentos com minha empresa e meu parceiro Noah Elliot. Ele foi bronze hoje usando a mesma configuração de equipamento que uso. Além disso, a Brenna Huckaby levou o ouro e o Keith Gabel (classe LL2) levou a prata. É inacreditável", celebrou. 

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Suur-Hamari capota logo após a linha de chegada para o ouro na classe LL2. Foto: Simon Bruty/OIS/IOC

Finlandês surpreende

"Naquela época, deitado na cama do hospital, jamais poderia imaginar que um dia ganharia uma medalha de ouro. É sensacional"
Matti Suur-Hamari

Uma das cenas mais simbólicas do fim de tarde em Jeongseon foi a comemoração do finlandês Matti Suur-Hamari ao vencer a categoria LL2, para atletas com mais possibilidade de mobilidade nos membros inferiores (um exemplo comum é o caso de amputações abaixo do joelho). Suur-Hamari é tricampeão mundial, mas não se conteve ao perceber que havia conquistado o ouro paralímpico. O porta-bandeira da delegação finlandesa em PyeongChang capotou logo após a chegada e se jogou na neve para celebrar a vitória sobre Keith Gabel na decisão. 

"Foi um dia muito estranho, difícil. O percurso estava áspero, não exatamente do jeito que se encaixa com meu estilo. Em alguns trechos estava acidentado. Além disso, o portão de saída quebrou e tivemos de esperar muito, ser pacientes. Por isso, estou ainda mais feliz de ter conseguido vencer depois de um dia como esse", afirmou o atleta, que teve a perna esquerda amputada abaixo do joelho depois de um acidente de moto. "Naquela época, deitado na cama do hospital, jamais poderia imaginar que um dia ganharia uma medalha de ouro. É sensacional". 

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And then… 🤣#FIN's @MattiSuurHamari has done it all there!#ParaSnowboard #Paralympics #PyeongChang2018 pic.twitter.com/UOC2FS7WdA

— World Para Snowboard (@Parasnowboard) March 12, 2018

 

Gustavo Cunha, de PyeongChang, na Coreia do Sul, rededoesporte.gov.br