Você está aqui: Página Inicial / Notícias / Juntas em Tóquio: Lethícia Lacerda tem "vaga na mão" e deve ir aos Jogos ao lado da mãe, Jane Karla

Tenis de mesa paralímpico

12/06/2020 09h59

jogos Paralímpicos

Juntas em Tóquio: Lethícia Lacerda tem "vaga na mão" e deve ir aos Jogos ao lado da mãe, Jane Karla

A jovem de 17 anos é a melhor das Américas na classe F8 do tênis de mesa, e busca inspiração na experiência da mãe na modalidade. Jane está próxima de garantir a participação no evento pela quarta vez, a segunda delas no tiro com arco

As cinco medalhas de ouro em Jogos Parapan-Americanos e as duas participações em Jogos Paralímpicos (Pequim 2008 e Londres 2012) não foram os únicos legados que Jane Karla Rodrigues deixou ao tênis de mesa antes de trocar a modalidade pelo tiro com arco. Criada em meio aos títulos da mãe, filha do também mesatenista paralímpico Lincoln Lacerda, e enteada do ex-técnico da seleção alemã Joachim Gogel, Lethícia Lacerda promete dar sequência aos resultados familiares. Aos 17 anos, a jovem está praticamente garantida para Tóquio.

O anúncio veio por meio de uma mensagem no celular de Jane na noite da última terça-feira, depois da divulgação dos critérios de qualificação pela Federação Internacional de Tênis de Mesa (ITTF, na sigla em inglês). Ficou determinado que os melhores de cada continente no ranking mundial de abril garantiriam a vaga direta. Lethícia é hoje a melhor atleta das Américas na classe F8. A divulgação oficial da lista está prevista para 30 de junho. 

12062020_montagem.jpg
Mãe e filha: juntas no tour da tocha, na paixão pelo esporte e na perspectiva de competir em Tóquio. Foto: arquivo de família

 

“Meu técnico mandou mensagem para a minha mãe com a confirmação e foi muito engraçado porque fiquei meio em choque, sabe? Se tudo der certo, vamos estar juntas, comendo juntas, vivendo juntas essa experiência"
Lethícia Lacerda

“Meu técnico mandou mensagem para a minha mãe com a confirmação e foi muito engraçado porque fiquei meio em choque, sabe? Eu não estava acreditando. Hoje de manhã que deu aquele ‘meu Deus, eu vou para Tóquio!’”, conta a jovem. E qualquer peso pela estreia poderá ser compartilhado com a mãe. Além das duas participações nos Jogos pelo tênis de mesa, Jane ainda competiu no Rio 2016 pelo tiro com arco e, no ano passado,  garantiu a vaga ao país para o Japão depois de terminar o Mundial da Holanda em sexto lugar. Está muito próxima de carimbar o passaporte, mas ainda aguarda a confirmação oficial do nome em Tóquio. 

 “Vamos estar juntas, comendo juntas, vivendo juntas essa experiência. Nossa, vai ser muito bom estar com a minha mãe lá. O bom é que ela já é experiente e vai me ajudar”, aposta Lethícia, que há alguns anos aproveita para ouvir de Jane como é o clima do evento. “Quando ela foi para a Rio 2016, eu tirei muitas dúvidas com ela, perguntei como era a Paralimpíada e ela contava tudo, me falava da vila, da praça de alimentação e que tinha até Mc Donald's de graça”, diverte-se a menina.

Mesmo para quem o evento não é mais novidade, Tóquio promete um sabor especial. “Eu sempre tive o sonho de ter a minha família comigo, na torcida. E agora tenho a emoção em dobro porque ela vai estar comigo e ainda competindo. Vou poder estar lá curtindo isso, e ela também curtindo a minha participação”, emociona-se Jane. “Vai dar dor de barriga de nervoso junto”, brinca a filha.

Esforço pela família

Ter a família ao seu lado foi o que motivou a troca de modalidade na carreira de Jane Karla. Depois de todos os títulos pelo tênis de mesa, em 2015 a atleta teria que se mudar de Goiânia para treinar com a seleção brasileira em São Paulo. Apesar de já ter vaga garantida para os Jogos Parapan-Americanos de Toronto, aquele não era o momento de deixar a família para trás.

“Eu sempre tive o sonho de ter a minha família comigo, na torcida. E agora tenho a emoção em dobro porque ela vai estar comigo e ainda competindo"
Jane Karla

“Em 2010 veio o câncer de mama na minha mãe, que foi muito difícil para mim. E depois descobri que eu também estava com câncer de mama. Foi um período difícil para mim e para a minha família, as duas ao mesmo tempo tendo que fazer um tratamento duríssimo, com quimioterapia, radioterapia, cirurgia. A gente viveu momentos críticos, não foi fácil. Lutamos muito. Em 2011, a minha mãe não resistiu e faleceu. Foram momentos complicados para nós”, relembra Jane.

A atleta, por sua vez, conseguiu completar o tratamento, se recuperar e disputar os Jogos Paralímpicos de Londres no ano seguinte. “Foi tudo uma luta, quase como uma fênix sempre se renovando dos acontecimentos, que não foram poucos. Essa mudança do esporte foi porque eu queria estar com a minha família depois de tantas situações complicadas, depois do sofrimento de todos pela perda da minha mãe e pelo meu tratamento. Aí, quando estou bem, vou para fora para treinar?”, questiona.

Jane celebra o ouro no tiro com arco no Pan de Toronto, em 2015, meses depois de trocar o tênis de mesa pela nova modalidade. Foto: Daniel Zappe/MPIX/CPB


Foi quando ela decidiu que abriria mão da modalidade e da vaga em Toronto, mas que conseguiria novamente esse lugar na competição continental em alguma outra modalidade. “Foi uma decisão difícil porque amo o tênis de mesa, mas cheguei à conclusão de que iria desistir de tudo, e no esporte que eu encontrasse e pudesse fazer na minha cidade, iria conquistar a vaga de novo para Toronto”, determinou.

Depois de breve contato com a esgrima em cadeira de rodas, a atleta encontrou o tiro com arco. “Comecei a experimentar e falei: ‘É esse que vou fazer’. No início, a flecha nem chegava perto”, conta, aos risos. “Eu ia para lá, ficava o dia inteirinho treinando, até de noite. Aí ligava o farol do carro e continuava atirando para garantir a vaga”, recorda-se.

O esforço superou expectativas. Jane não apenas conseguiu novamente seu lugar no Parapan: conquistou a medalha de ouro e uma vaga para os Jogos Paralímpicos Rio 2016. “Tudo na raça, na determinação, naquele sonho e naquele foco. Acho que tudo na vida tem de ser assim. Se não dá de um jeito, tenta de outro”, ensina, sempre bem humorada.

O aprendizado e a necessidade de adaptação surgiram ainda na infância: aos três anos, foi diagnosticada com poliomielite. “Minha mãe conta que eu já estava dando meus primeiros passinhos. Perdi todos os movimentos. Sou uma guerreirinha desde criança”, define.

Exemplo fora de casa 

Mesmo diante de toda a trajetória da mãe no esporte paralímpico, Lethícia precisou ter outros exemplos para encontrar a persistência quando descobriu a própria deficiência. A jovem já competia no tênis de mesa convencional quando, há quatro anos, soube que as fortes dores que sentia no quadril eram o sinal de uma doença genética que comprometeria sua mobilidade. “Infelizmente, quando eu era olímpica e a deficiência começou a se desenvolver, eu parei o tênis de mesa porque a minha cabeça ficou muito frustrada com isso, fiquei triste, achei que não teria mais futuro no esporte”, explica. 

“Quando a mãe fala, às vezes o filho não escuta muito”, brinca Jane. Lethícia justifica: “Eu pensava que comigo talvez não desse certo. Eu também estava passando por uma fase em que tinha muitas crises de dor, então estava com a cabeça fraca para isso”, conta. Mesmo assim, a adolescente aceitou disputar um torneio escolar em São Paulo. Ali, conhecendo outras histórias de pessoas com deficiência e na mesma faixa etária, a cabeça mudou.

“Foi lá que meu olho brilhou e percebi que conseguiria chegar aonde quisesse se tivesse garra e determinação”, ensina. “Percebi que se me esforçasse muito, treinasse com mais frequência, eu conseguiria ir para uma competição internacional, conhecer lugares novos, pessoas novas. Isso me ajudou muito até no meu psicológico, porque eu não tinha tanto contato com pessoas que estivessem passando pelo mesmo que eu”, completa.

Estreante nos Jogos Parapan-Americanos, Lethícia conquistou o bronze em Lima. Foto: Douglas Magno/EXEMPLUS/CPB

Para Jane, a filha precisou passar por esse processo de aceitação. “Como foi tudo tão de repente, de começar a ter esse problema, essa perda física, acredito que foi uma fase que toda pessoa que tem uma vida normal, e de repente se vê com uma deficiência, tem que ter mesmo um período para se adaptar, para amadurecer e ver que ter uma deficiência não te impede de fazer tudo na vida. Existe a limitação, mas a gente sempre consegue se adaptar”, ensina.

O torneio escolar era apenas o início de mais uma história de conquistas na família. No ano passado, Lethícia já teve uma primeira experiência em megaevento e conquistou a medalha de bronze nos Jogos Parapan-Americanos de Lima. Na ocasião, mãe e filha não puderam estar juntas na competição porque o tiro com arco ficou de fora do programa oficial.

Pandemia

Atualmente morando em Portugal, as duas aguardam a liberação do país para retomarem os treinos. Por enquanto, continuam em casa, cumprindo o distanciamento social provocado pela pandemia de Covid-19, e treinando como podem. Jane, que atira a distância de 50m nas competições, arrumou um “cantinho” de apenas cinco metros em casa para praticar. Já a filha pode apenas assistir a vídeos de tênis de mesa, já que a mesa não cabe no apartamento da família.

“O que me deixa um pouco triste é que, por causa da pandemia, estou impossibilitada de treinar. O tênis de mesa é um esporte em que você tem contato direto com outras pessoas, você precisa ter uma pessoa do outro lado da mesa tocando a bolinha. Isso me deixa triste porque estou parada por enquanto, até segunda ordem. Isso mexe com o psicológico do atleta. Espero que isso acabe logo e que consiga voltar a treinar para dar tudo de mim”, deseja Lethícia.

Mesmo com os treinos prejudicados e o evento adiado para 2021, o sonho de chegar ao pódio permanece vivo para Jane Karla. No Rio, a atleta parou nas quartas de final. “A cada ciclo a gente vem se preparando para chegar bem. Já estamos nos preparando o ciclo todo com aquele grande objetivo de chegar lá e de trazer uma medalha para o Brasil. E estou feliz de ter a minha filha lá, vai ser incrível”, adianta.

Em toda a sua preparação, a arqueira conta com o apoio da Bolsa Pódio, categoria mais alta do programa Bolsa Atleta do Ministério da Cidadania. “A Secretaria Especial do Esporte fez uma grande diferença na minha vida na área esportiva. Todo o crescimento e todo o desenvolvimento devo extremamente à Secretaria porque pude me dedicar ao esporte e trazer resultados, realizar meus sonhos de atleta”, afirma. 

Ana Cláudia Felizola – rededoesporte.gov.br