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Atletismo

19/04/2018 16h39

Ninguém nasce campeão

Israel e Danielle: o pódio como símbolo de múltiplas conquistas

Em mais uma reportagem da websérie Ninguém Nasce Campeão, atletas do tênis de mesa que subiram ao pódio nos Jogos Rio 2016 refletem sobre o "preço" e o significado de suas conquistas

Ela não nega: há um carinho especial por aquela camisa preta e rosa com detalhes em cinza. Não é um uniforme qualquer. “É um divisor de águas. Foi com ela que joguei a primeira competição paralímpica”, recorda a catarinense Danielle Rauen, de 20 anos. A prata conquistada num torneio em Santos (SP) abriu caminho para uma vaga na seleção. A partir dali, frequentou pódios no Parapan de Jovens de Buenos Aires (2013), no Parapan de Toronto (2015) e nos Jogos Rio 2016. “Quando olho para ela, quando treino com ela, me traz lembranças boa. Depois daquele torneio, vieram muitos resultados expressivos”, completa a medalhista de bronze por equipes na Paralimpíada carioca.

Ele olha com reverência histórica para uma correntinha que carrega sempre por perto desde 2016. “É uma letra hebraica que simboliza sorte. Um símbolo da minha família. Tenho um avô sobrevivente da Segunda Guerra Mundial e isso me faz acreditar que tenho um DNA forte. Meu avô sobreviveu a Auschwitz. É um símbolo que me ajuda a encarar as dificuldades que o esporte exige”, conta Israel Stroh, medalhista de prata no torneio individual dos Jogos Paralímpicos do Rio na Classe 7.

O respeito simbólico, na verdade, foi um processo de construção para o paulista de Santos, hoje com 31 anos. Israel ganhou a joia em seu Bar Mitzvah, cerimônia judaica que representa a maioridade religiosa dos adolescentes. “Naquela época, levei para uma competição, perdi e fiquei bravo. Não era para trazer sorte?”. A relação de desconfiança só se desfez numa conversa informal com um rabino na Vila Paralímpica dos Jogos do Rio. “Ele me disse: 'ela traz sorte, sim, mas não faz você ganhar jogos, porque para ganhar você precisa cumprir os objetivos e metas que uma vitória exige. Não é uma muleta'. Depois disso, fiquei meio frustrado por não ter levado a correntinha aos Jogos do Rio, mas comecei a trazer sempre comigo”.

“O esporte de alto rendimento não é um trabalho como qualquer outro. A gente se dedica 24 horas. Treinamos ‘no horário de bater o cartão’, mas temos de almoçar o que a nutricionista manda, dormimos na hora que o fisiologista indica, seguimos a preparação física. O tempo todo obedecemos alguém”
Israel Stroh

Tempo integral

Se a relação afetiva com os adereços é um “plus”, a dupla entende bem de verdade é da outra face necessária para os pódios se tornarem realidade. “O esporte de alto rendimento não é um trabalho como qualquer outro. A gente se dedica 24 horas. Treinamos ‘no horário de bater o cartão’, como em qualquer profissão, mas saímos e temos de almoçar o que a nutricionista manda, dormimos e acordamos na hora que o fisiologista indica, seguimos a preparação física. O tempo todo obedecemos alguém”, resume Israel. 

“Isso implica evitar grandes passeios sociais. Se a gente vai para o bar com os amigos, não faz tudo o que eles fazem. Temos sempre de voltar mais cedo. Por outro lado, há uma recompensa: consigo transformar em ganha-pão uma atividade que na infância e adolescência fiz por hobby. A gente viaja o mundo inteiro por causa do tênis de mesa, conhece gente de tudo quanto é parte”, avalia. Israel praticou o tênis de mesa olímpico até os 25 anos, quando descobriu que era elegível entre os paralímpicos. O atleta tem limitação de mobilidade resultante de paralisia cerebral causada por falta de oxigenação na hora do parto. 

Danielle durante os Jogos Rio 2016: bronze por equipe. Foto: Miriam Jeske/ME

Danielle, por sua vez, deixou sua zona de conforto bem cedo. “Saí de casa com 15 anos, muito jovem. Poderia até alcançar minhas metas na cidade onde morava, mas aqui há mais recursos, pessoas especializadas. Deixei pais, amigos e nem tinha terminado o ensino médio. Passei muito cedo a fazer atividades de casa, coisas que provavelmente só faria em condições normais quando adulta”, relata a atleta, que trocou São Bento do Sul (SC) para viver em São Paulo e treinar na estrutura do Centro de Treinamento Paralímpico. “Tudo isso me fez ser mais forte, aprender a superar as coisas rápido. Sei que preciso me dedicar ao máximo para valer a pena”.

O tênis de mesa surgiu para Danielle com caráter de terapia. Ela descobriu aos quatro anos uma artrite reumatoide, que causa atrofia dos músculos e degenera articulações. A prática esportiva ajuda a deter o avanço da enfermidade e o tênis de mesa entrou no cardápio aos dez anos. "É como se fosse meu remédio. É minha fisioterapia. A tradicional doía muito. Tenho de me mexer sempre. Se parar, atrofia. E o tênis de mesa exige o uso de toda a musculatura", disse, numa entrevista concedida à Rededoesporte logo após conquistar o ouro no Parapan de Toronto, em 2015. “Foi através do esporte que hoje estou como estou. No início jogava só campeonatos olímpicos, e há quatro anos faço competições pelo paralímpico”. 

"Depois de ganhar a medalha, fui a um hospital em que me tratei. Passei por alas em que já estive, em que fiz sessões de medicação forte. Mostrei a medalha e o mascote. As pessoas me olhavam com a esperança de ter um amanhã melhor. Essas pequenas coisas me fazem bem”
Danielle Rauen

A força dos símbolos

Mais do que uma camisa ou uma correntinha, Danielle e Israel treinam com o pensamento em outro tipo de dimensão simbólica que a atividade deles permite. “Um dos meus objetivos quando comecei a fazer disso uma carreira era ajudar pessoas que procuram a gente no dia a dia. Pessoas que vêm e te dizem: ‘Poxa, me inspiro em você. Tiro força para as atividades cotidianas pensando em você’", conta Danielle, particularmente tocada por histórias de outras crianças e pessoas com a mesma doença dela.

“Muitas vêm conversar e dizem: ‘Que bacana você conquistar tudo isso, mesmo com todas as dificuldades que presencio da doença’. Em 2016, pouco depois de ganhar a medalha no Rio, fui a um hospital em que me tratei. Fui lá, mostrei a medalha, o mascote. Passei por alas pelas quais já passei, em que fiz sessões de medicação forte. Visitei a ala de câncer, leucemia, diálise. As pessoas me olhavam com a esperança de ter um amanhã melhor. No fim das contas, não é o troféu, mas essas pequenas coisas que me fazem bem”. 

Israel vai por trilha semelhante. “Eu penso sempre a respeito da importância de uma medalha. Por que a gente quer tanto uma? No fim das contas, é um objeto que você pendura na parede do quarto. O mais bacana é o símbolo. Quando a gente conquista uma medalha desse porte, a gente promove nos outros a possibilidade de sonhar. O mundo inteiro quer a medalha que a gente conquistou, mas a gente conseguiu. Então a gente tem o direito de falar para o nosso país que é possível sonhar alto. Se a gente não conquistasse, o direito ficaria para um chinês, um alemão, outro país. Poder trazer essa reflexão para o nosso país e ser protagonista é muito gratificante. É o que  faz a gente acordar cedo, às vezes um tiquinho mal humorado, mas achando que vale a pena”, diz o atleta, que é jornalista formado. 

Israel com a prata conquistada nos Jogos Rio 2016: direito ao sonho. Foto: Francisco Medeiros/ME

Construção de um campeão

“Um campeão se constrói. Ele olha para as dificuldades de frente, se assusta quando pode, mas faz com que aquela dificuldade vire passado. E de dificuldade em dificuldade a gente cria um castelo, se fortalece, e passa a se tornar candidato a grandes conquistas"
Israel Stroh

Na vida prática, tanto um quanto outro avaliam que o caminho para formar um atleta de destaque tem muito mais de suor e persistência do que de talento puro e obra do acaso. “É uma história, uma trajetória. Uma pessoa se constrói campeã. Eu formulei meus objetivos. Estou realizando eles. Quero mais ainda. É dia a dia, passo a passo, não é curto prazo. A pessoa pode até nascer com talento, mas a história ela vai fazer”, avalia Danielle.  

“Um campeão se constrói. Ele olha para as dificuldades de frente, se assusta quando pode, mas faz com que aquela dificuldade vire passado. E de dificuldade em dificuldade a gente cria um castelo, se fortalece, e passa a se tornar candidato a grandes conquistas. O campeão tem de ter essa disposição de abrir mão de confortos que todos têm. A força é interior e o trabalho é construído”, completa Israel.

Fim da “vira-latice”

Se o caminho é, por definição, de persistência e repetição, as ferramentas à disposição precisam ser, segundo os atletas, as mais adequadas. “Esse Centro de Treinamento acabou com o nosso ‘Complexo de Vira-latas’. Antes a gente treinava pensando: ‘Poxa, os britânicos têm um CT climatizado e a gente aqui, a 40ºC, mas vamos em frente porque a gente é brasileiro e não desiste. Hoje, acabou isso. A gente olha para eles em condições esportivas de igualdade”, afirma Israel, sobre a instalação que abriga 15 modalidades paralímpicas, viabilizada em parceria pelo Ministério do Esporte e o Governo de São Paulo. 

Construído seguindo parâmetros de acessibilidade, com rampas de acesso e elevadores, a estrutura inaugurada em maio de 2016 conta com 86 alojamentos, capazes de receber entre 280 e 300 pessoas, e áreas para treinamento de atletismo, basquete em cadeira de rodas, bocha, natação, esgrima em cadeira de rodas, futebol de 5, futebol de 7, goalball, halterofilismo, judô, rúgbi em cadeira de rodas, tênis de mesa, tênis em cadeira de rodas, triatlo e vôlei sentado.

“Assim que passei a treinar com essa estrutura que a gente tem hoje, tive o melhor ano disparado de minha carreira. Consegui resultados expressivos que não colocaria nos meus objetivos tão cedo. Ter esse apoio, todos esses profissionais aqui com a gente, é super importante”, encerra Danielle.   

Gustavo Cunha, rededoesporte.gov.br