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Futebol de 5
Da guerra ao Rio 2016: o angolano que veio ser alfabetizado no Brasil e defenderá o país nos Jogos Paralímpicos
Mauricio Tchope Dumbo, 26 anos, advogado e jogador da seleção brasileira de futebol de 5. Hoje é assim, graças a uma série de acontecimentos sucessivos que trouxeram o angolano para o Brasil em 2001, quando tinha 11 anos. Naquela época, Dumbo, deficiente visual desde os cinco anos de idade, era analfabeto e vivia nas ruas de Benguela, oeste de Angola, cidade com mais de 500 mil habitantes. Quinze anos depois, o angolano ganhou outra nacionalidade, formou-se em Direito – o primeiro da família com curso superior completo – e está prestes a representar o Brasil nos Jogos Paralímpicos Rio 2016. Uma reviravolta em uma vida que estava, aparentemente, fadada a um rumo completamente diferente.
Em uma Angola assolada pela Guerra Civil por quase três décadas, a história de Mauricio Dumbo começou a mudar quando ele era um menino de cinco anos. A falta de tratamento adequado para o sarampo custou a visão e a audição. Pouco depois ele voltaria a ouvir, mas o mundo não seria mais o mesmo.
“Enxerguei até os cinco anos. Quando conto, todo mundo se admira. No Brasil, o sarampo é uma doença que não causa mais cegueira. Mas em Angola, justamente devido à guerra, não tinha investimento. Peguei sarampo e o tratamento foi feito em casa, com ervas naturais que os mais velhos usam bastante. Hoje em dia eu falo que felizmente não foi bastante eficaz”, sorri.
“Todo mundo tinha medo de andar na rua, de acionar uma mina terrestre”, Mauricio Dumbo, sobre a infância em Angola durante a Guerra Civil
Pode parecer estranho, mas se não fosse a cegueira Mauricio Dumbo poderia ser mais um jovem angolano sem oportunidade de se desenvolver. Aos 11 anos, o menino que ainda não estudava e chutava garrafas na rua como forma de diversão foi abordado por um integrante do governo local para fazer parte de um projeto de alfabetização no Brasil. Ele não pestanejou.
“Aceitei na hora. O Brasil é um país muito bem aceito em Angola. Pelo futebol e pelas novelas brasileiras, que passam bastante”, explica. Dumbo veio com outros 17 jovens angolanos em busca de oportunidade. Passaram cerca de quatro meses em Minas Gerais antes de chegar a Curitiba, onde se estabeleceram e foram alfabetizados. “O mais velho tinha 14 anos e o mais novo tinha sete”, conta, sobre o grupo que veio ao país.
Prazer, futebol de 5
A relação de Mauricio Dumbo com o futebol até chegar ao país era modesta. Ele tinha ouvido falar da seleção brasileira, campeã do mundo em 1994, mas não fazia ideia de que poderia fazer parte do esporte. “Para mim não era possível um cego jogar bola”, diz.
No Paraná, o angolano foi apresentado ao futebol de 5 por alguns colegas do instituto onde estudava. O primeiro contato não foi fácil. “Tinha um pouco de receio, achava a bola pesada. No primeiro dia tomei uma bolada na boca do estômago e desisti. Parei uns três meses”, lembra, rindo. “Os outros me diziam que acontecia. No futebol de 5 tem que falar muito para não ter trombada. Essa foi outra dificuldade. Bati bastante de cabeça. Ficava pensando: ‘Esses caras são malucos. Tem que ser masoquista para jogar’. Eu pensava que era muita violência.”
Com o tempo, experiência, elogios dos companheiros e técnicos e muita persistência, Dumbo seguiu a caminhada. Disputou campeonatos, fez gols e chamou a atenção da comissão técnica da seleção brasileira. Na última edição do Brasileiro da modalidade, foi vice-artilheiro e eleito o melhor da competição. Só não fez mais gols que Ricardinho, seu companheiro de equipe e um dos melhores do mundo no esporte. “Sou tipo o garçom, sirvo para ele fazer os gols”, brinca Dumbo, sobre a parceria com Ricardinho na Agafuc, a Associação Gaúcha de Futsal para Cegos.
Angolano e brasileiro
Foi no Rio Grande do Sul que a ideia de buscar a naturalização ganhou força e saiu do papel. Apoiado pela Agafuc, Mauricio Dumbo deu entrada no pedido. “Eles me deram bastante apoio. Custearam tudo”.
Dumbo virou oficialmente cidadão brasileiro em março, às vésperas dos Jogos Rio 2016. Depois de ganhar destaque no Brasileiro, ganhou uma oportunidade na seleção. Foi treinar com a equipe em algumas fases de treinamento, mas, a princípio, a convocação para disputar a Paralimpíada não veio. “Fui convocado, mas não fiquei entre os 10 que viriam aos Jogos. Me desanimei bastante, mas continuei treinando, porque logo teria o Campeonato Brasileiro”, recorda Dumbo.
Mas a vida reservou mais uma surpresa. Na última sexta-feira, 2 de setembro, Dumbo recebeu uma ligação que mudaria tudo. “O treinador me ligou de manhã, quando eu estava me preparando para treinar. Foi muito estranho, fiquei pensando se não tinha ouvido errado ou confundido. Acho que fui o último atleta a ser chamado para a Paralimpíada”, ri o jogador, chamado de última hora para substituir Gledson, que se lesionou e não poderá disputar o Rio 2016.
Agora, Mauricio Dumbo faz parte do time que tentará manter a hegemonia do Brasil no futebol de 5 nos Jogos Paralímpicos. A modalidade entrou no programa em Atenas 2004. Nas três edições em que foi disputada, o Brasil conquistou a medalha de ouro.
“A medalha vai ter que ficar aqui. Sabemos que não é fácil, querendo ou não as finais foram sempre com a Argentina, o maior clássico. Mas a gente sempre ganhou e este ano também vamos ganhar. Não vai faltar vontade nem raça. Se precisar se jogar no chão, a gente vai ser jogar”, promete Dumbo.
Família e obstáculos
Se a história de Mauricio Dumbo parece desenhada para um final feliz, os capítulos que ligam o menino em meio à guerra ao atleta paralímpico brasileiro tiveram suas boas doses de drama. O primeiro, e talvez o maior deles, foi a distância da família. Dumbo ficou de 2001 a 2009 sem contato com parentes angolanos, forçados a se mudar constantemente por reflexos da guerra. Mais uma vez o acaso entrou em ação. Em 2005, Dumbo voltou à Angola para cantar com um coral no aniversário do presidente do país. Em meio às apresentações, uma delas, em uma igreja que tinha uma filial em Benguela, foi filmada e o vídeo acabou chegando à cidade de Dumbo.
“Meu irmão me reconheceu, foi falar com os dirigentes da igreja e passaram meu contato para ele. Até hoje tenho contato com a família”, conta o jogador, que só do lado do pai tem 21 irmãos. “Eles estão felizes. Imagina, terminei a faculdade e agora estou numa Paralimpíada para defender o Brasil. Estão me dando bastante apoio. Quero trazer minha mãe para morar aqui, dar uma vida melhor para ela em questão de saúde. Ela é analfabeta, quero ver se ela consegue aprender. É o maior sonho que tenho para realizar”, afirma.
A vida no Brasil também teve percalços. O caminho para que Mauricio Dumbo se tornasse advogado, e hoje empregado no Tribunal de Justiça do Paraná, veio com sacrifício e incertezas. Já no último ano de faculdade, Dumbo e seus companheiros angolanos viram o governo do país africano encerrar o apoio e parar de custear a vida dos jovens no Brasil.
“Sempre falo que pai é quem cria. O Brasil foi quem me criou, me deu a personalidade e o caráter que tenho. Se hoje sei ler, se sou homem, é graças ao Brasil"
“Eles queriam nos levar embora porque acharam que a gente já tinha ficado tempo suficiente. Não aceitamos, porque a maioria de nós estava no último ano de faculdade. Batemos o pé. A gente queria realizar esse sonho de terminar a faculdade, de ter o ensino superior”, explica.
Sem o apoio do governo de Angola, os estudantes tiveram que achar um lugar para morar, correr atrás do visto permanente, conseguir empregos e se sustentar, além de se dedicar aos estudos para concluir a faculdade. “Quase fomos parar na rua”, lembra Mauricio Dumbo, agradecendo a ajuda dos brasileiros para superar os obstáculos.
“Eles nos apoiaram, doaram alimentação. Um amigo nosso tinha uma casa e hospedou todo mundo. Fomos na defensoria pública dar entrada no visto. O processo começou em novembro de 2014 e saiu mais ou menos em julho de 2015. Foi um período complicado, tínhamos que fazer o TCC e nos preocupar em comer, se teríamos onde dormir. Mas o povo brasileiro é acolhedor e solidário”, diz.
Formado, estabelecido e brasileiro, o angolano não economiza palavras para agradecer ao país que o acolheu e transformou sua vida. “Sempre falo que pai é quem cria. O Brasil foi quem me criou, me deu a personalidade e o caráter que tenho. Se hoje sei ler, se sou homem, é graças ao Brasil. Só não é meu primeiro país porque infelizmente não nasci aqui. Mas sou brasileiro. Brasileiro e angolano”, discursa Dumbo, abrindo mais um sorriso antes de sair para acompanhar o resto da seleção de futebol de 5.
Vagner Vargas – Brasil2016.gov.br