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27/07/2021 10h38

TÓQUIO 2021

As ondas douradas de Ítalo Ferreira

Surfista potiguar vive um dia perfeito na praia de Tsugaraki, conquista a primeira medalha de ouro para o Brasil nos Jogos Olímpicos de Tóquio e se emociona ao falar da avó e dos amigos que o ajudaram a entrar a para a história do esporte

Há um quarto vazio esperando por Ítalo Ferreira em uma casa na cidade de Porto, próximo a Baía Formosa, no Rio Grande do Norte, onde ele nasceu, em 6 de maio de 1994.

Era para essa casa que o surfista potiguar partia diretamente quando retornava de uma competição com um troféu e o motivo era simples: era ali que ele, orgulhoso, mostrava para a avó, a dona Mariquinha, o resultado das ondas que ele havia surfado.

Ítalo é carregado pelos integrantes da equipe brasileira após o triunfo na final: emoção histórica. Foto: Rodolfo Vilela/rededoesporte
“Realmente vem muitas memórias na minha cabeça. Vem a minha família e a avó que já se foi. Gostaria muito que ela estivesse aqui vendo tudo o que eu estou fazendo no esporte, crescendo como pessoa, ajudando aqueles que estão ao meu lado. Isso é uma conquista incrível para a minha carreira como profissional, mas como pessoa eu acho que é mais importante”
Ítalo Ferreira, surfista campeão olímpico

Na tarde desta terça-feira (27.0) no Japão, madrugada de terça, no Brasil, Ítalo Ferreira emocionou o país ao conquistar, nas ondas da praia de Tsugaraki, em Ichimoya, distante cerca de 100 quilômetros da capital japonesa, a primeira medalha de ouro do Brasil nos Jogos Olímpicos de Tóquio, após a vitória na decisão sobre o japonês Kanoa Igarashi.

Dona Mariquinha partiu há dois anos, quando Ítalo estava no Havaí. E a memória da avó foi um dos primeiros pensamentos que ele teve quando entrou para a história do surfe como o primeiro campeão olímpico da modalidade.

“A minha avó foi a maior figura. A gente sempre brincava, zuava um ao outro, e ela sempre me dava força. Quando eu voltava de um campeonato a primeira coisa que eu fazia era mostrar o troféu para ela. Quando eu fui campeão do mundo (em 2019), levei o troféu lá no quarto dela. Ela não estava, mas continuei no mesmo ritual e provavelmente eu vou levar a medalha lá no quarto dela de novo”, contou Ítalo, que mostrou todo seu lado humano ao falar sobre os momentos que viveu ao conquistar o ouro olímpico.

“Realmente vem muitas memórias na minha cabeça. Vem a minha família e a avó que já se foi. Gostaria muito que ela estivesse aqui vendo tudo o que eu estou fazendo no esporte, crescendo como pessoa, ajudando aqueles que estão ao meu lado. Isso é uma conquista incrível para a minha carreira como profissional, mas como pessoa eu acho que é mais importante”, frisou.

Investimentos federais

Com a inclusão do surfe no programa dos Jogos, a modalidade passou a integrar o Bolsa Atleta. Assim, os quatro atletas que representaram o país na capital japonesa – Ítalo Ferreira, Gabriel Medina, Silvana Lima e Tatiana Weston-Webb – integram o programa de patrocínio individual do Governo Federal Brasileiro. Nesse ciclo, o investimento direto na modalidade foi de R$ 1,4 milhão, valor suficiente para a concessão de 56 bolsas para praticantes do surfe.

“É olhar para trás e ver da onde eu vim, com quem eu cresci, aqueles que estavam ao meu lado e que acreditaram em todos os momentos. Estar vivendo tudo isso acho que é a parte mais tranquila. A parte mais difícil estava lá, no passado. Era acreditar, era perseverar, era treinar... Poxa, hoje eu só vivo um sonho e tento aproveitar cada oportunidade”, continuou Ítalo.

Quartas de final

O dia dourado de Ítalo Ferreira começou com uma agenda que foi antecipada do dia 28 para esta terça por força da ameaça de um tufão que tem obrigado a organização a rever o cronograma de competições nos Jogos de Tóquio. Assim, as baterias desde terça e quarta foram unificadas e as quartas de final, semifinal, disputa de bronze e disputa de ouro foram realizadas em apenas um dia, tanto no masculino quanto no feminino.

O primeiro pódio olímpico do surfe, com Ítalo ao centro: um ouro que emocionou o Brasil. Foto: Rodolfo Vilela/rededoesporte
“É olhar para trás e ver da onde eu vim, com quem eu cresci, aqueles que estavam ao meu lado e que acreditaram em todos os momentos. Estar vivendo tudo isso acho que é a parte mais tranquila. A parte mais difícil estava lá, no passado. Era acreditar, era perseverar, era treinar... Poxa, hoje eu só vivo um sonho e tento aproveitar cada oportunidade”

Quando as baterias começaram, três brasileiros – Ítalo, Gabriel Medina e Silvana Lima – estavam nas quartas de final e tinham chances de conquistar medalhas. Havia entre os brasileiros a expectativa e a torcida de que Ítalo e Gabriel pudessem disputar uma final e, com isso, garantir o ouro e a prata para o Brasil. Mas as coisas não saíram como o planejado para o bicampeão mundial Medina.

Gabriel foi o primeiro a cair na água para medir forças com o francês Michel Bourez. O brasileiro não teve problemas para venceu com 15,33 pontos contra 13,66 do francês. Ítalo, por sua vez, encarou o japonês Hiroto Ohhara e triunfou com uma vantagem ainda maior: 16,30 x 11,90.

A brasileira Silvana Lima, entretanto, teve pela frente uma rival duríssima, a norte-americana Carissa Moore, tetracampeã mundial e atual líder do ranking mundial, que venceu por 14,26 contra 8,30 de Silvana, para depois ficar com o ouro. A prata foi para sul-africana Bianca Buitendag e o bronze para a japonesa Amuro Tsuzuki.

“Acabei não encontrando boas ondas”, avaliou Silvana. “Acho que surfei bem. Estava no foco de chegar à final, mas não foi dessa vez. A Silvana não parou e quer estar na próxima Olimpíada”, avisou a surfista.

Semifinais

Foi na primeira semifinal que as coisas começaram a complicar para Medina. Diante do representante da casa, Kanoa Igarashi, o brasileiro começou liderando com certa tranquilidade e levou a dianteira até o momento em que faltavam 10 minutos para acabar a bateria. Foi quando Kanoa encaixou um belo aéreo, tirou a vantagem de Gabriel e virou o placar. Medina ainda tentou reagir no último minuto, mas acabou derrotado pelo placar de 17,00 x 16,76, dizendo adeus ao ouro olímpico.

“Dei meu melhor. Dá uma tristeza. Desculpe galera. Valeu pela torcida! Seguimos! Fé em Deus”, postou Medina pouco depois.

Ítalo decola: manobras radicais nas ondas da praia de Tsugaraki. Foto: Rodolfo Vilela/rededoesporte
“A semifinal foi realmente um drama. Foi uma bateria difícil e quando eu passei para a final eu falei: Ah, agora já era!”

Sem Gabriel na final, restava a Ítalo lutar por uma vaga na decisão contra o australiano Owen Wright. Após uma disputa muito apertada, o brasileiro venceu por 13,17 x 12,47 e embalou rumo ao ouro.

“A semifinal foi realmente um drama”, resumiu Ítalo. “Foi uma bateria difícil e quando eu passei para a final eu falei: ´Ah, agora já era!´”, recordou.

Com Ítalo Ferreira garantido na final e com o Brasil com pelo menos a medalha de prata assegurada, Medina voltou para a água para brigar pelo bronze com o australiano Owen Wright. Mas o rival levou a melhor e o bicampeão mundial, que desembarcou no Japão como um dos principais cotados ao ouro, acabou fora do pódio. Abatido e chateado, Medina foi embora sem falar com os jornalistas.

Prancha quebrada

Restavam a Ítalo 35 minutos de bateria para que ele pudesse assegurar um lugar definitivo na história do surfe e garantir a alegria de milhões de brasileiros que torciam por ele em casa.

Logo no primeiro minuto, ao embarcar na primeira onda, veio o susto. O potiguar decolou para uma manobra e, ao cair, desapareceu no meio da espuma para surgir pouco depois agitando os braços para cima e pedindo por ajuda.

Sua prancha havia se partida ao meio na queda e foi preciso que o socorroe viesse de fora, com o amigo Marcos lhe entregando outra prancha. “Realmente foi um campeonato diferenciado. Todos os atletas chegaram aqui no Japão imaginando que iria ter ondas pequenas, que era o normal. E aí, uma semana antes, a gente viu esse tufão, com ondas de um metro e meio a dois metros na série, totalmente diferente do que a gente tinha imaginado. Eu trouxe um equipamento de pranchas diferente e a minha última prancha era uma prancha mais ou menos até. Eu tinha quebrado a minha primeira prancha na primeira onda e tive que mudar minha tática”, explicou Ítalo, que, a partir daí, adotou uma estratégia mais conservadora que resultou em uma vitória tranquila sobre Kanoa Igarashi por 15,14 x 6,60.

“Eu tento sempre fazer o melhor e é até um pecado em alguns momentos. Podia ser um pouco mais calmo, usar só 80% e passar as baterias, e foi o que eu fiz contra o Kanoa. Fiz um surfe normal, um surfe razoável. Achei as ondas, procurei, ditei o ritmo da bateria e botei pressão. É bem difícil competir no mar, mas a gente aproveita de todas as maneiras”, ensinou o campeão olímpico.

Inspiração e agradecimentos

O primeiro medalhista de ouro do Brasil nas Olimpíadas de Tóquio espera que sua façanha possa motivar muitos brasileiros, principalmente os mais pobres.

“Isso serve de inspiração para aqueles que vêm de baixo e que têm sonhos e que acreditam até o final. Acho que foi o que eu fiz. É aproveitar todas as oportunidades da vida. A gente tem oportunidades e às vezes a gente só tem uma. Eu vivo intensamente, posso dizer assim. Eu sabia que aqui era uma oportunidade de mostrar o meu melhor e de sair daqui com essa medalha, porque eu vim com esse sentimento de vir e ganhar o campeonato e eu fiz valer a pena os últimos dois meses de treino”, disse o surfista, que lembrou a importância de ter estado com as pessoas que ama por um mês no Brasil antes de embarcar para o desafio no Japão.

“Voltei para casa para recarregar as energias, para estar com as pessoas que eu amo, que realmente acreditaram e que estavam ali comigo, os meus amigos que surfavam comigo logo cedo e que estavam ali me incentivando, falando o que estava errado ou o que estava certo”.

Um desses amigos foi quem correu para levar a prancha para Ítalo depois do susto no início da bateria contra Kanoa. “Um dos meus amigos, o Marcus, que é um moleque que cuida da minha vida hoje, eu dou graças a Deus por ter conhecido. Quando eu tinha 14 anos, no Espírito Santo, quando eu fiquei sem hotel e ele me levou para casa dele em um Unozinho. Depois me levou para o shopping, para o aeroporto, e hoje ele trabalha comigo e a gente cresce juntos. Hoje a gente tem uma família incrível, que está aí, 100% deixando todos os meus detalhes certos e eu só preciso entrar na água e fazer o que eu amo. Eu tenho uma equipe, tenho um suporte, e tenho pessoas que estão ali 100% a minha disposição. Foi ele que me ajudou ali no final, tanto ele quando o Rudá”, revelou.

“O Rudá era um ex-surfista profissional, que vive no Havaí hoje e que estava aqui como coach da Silvana. Eu pedi para ele: `Rudá, vamos levar essa medalha para o Nordeste! Ele é da Bahia, de Salvador, e ele me deu uma força incrível durante esses dias. Fala a real, sempre de homem para homem, olho no olho. Ele falava umas paradas que realmente me deixavam muito motivado. Então, eu gostaria de agradecer a ele também pela força”.

A madrugada de terça-feira terminou em festa nas ruas de Baía Formosa e entre os familiares de Ítalo Ferreira. Foi de lá que a mãe, Katiane, chorou ao falar ao vivo sobre a conquista do filho a uma rede de televisão. Ítalo agora pretende construir na casa da avó um projeto para apoiar as crianças. “a gente vai transformar a casa em um instituto para ajudar as crianças”, avisou.

Para o menino de ouro de Baía Formosa, a caminhada que ele trilhou no Japão e tudo o que está por vir deixaria a dona Mariquinha muito feliz. “Acho que a gente tem que aproveitar cada momento, aproveitar aqueles que a gente ama e ela foi uma pessoa que eu realmente aproveitei muito e só tenho boas memórias. Então, ela, lá de cima, está muito orgulhosa”.

O Brasil inteiro também.

Surf - Jogos Olímpicos de Tóquio

Luiz Roberto Magalhães, de Tóquio, no Japão – rededoesporte.gov.br