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Maratona aquática

04/08/2021 02h05

Maratonas Aquáticas

A glória de Ana Marcela Cunha agora é eterna

Fenômeno das maratonas aquáticas conquista o ouro nas Olimpíadas de Tóquio e escreve seu nome como a maior atleta que a modalidade já produziu

A baiana Ana Marcela Cunha já era uma gigante das maratonas aquáticas quando saltou para as águas do Pacífico para dar suas braçadas no circuito de 10 quilômetros montado em Odaiba Marine Park no início de uma manhã quente e extremamente úmida desta quarta-feira, 4 de agosto de 2021, em Tóquio.

Nos últimos sete anos, desde que iniciara a parceria com o técnico Fernando Possenti, a brasileira havia construído um currículo impressionante de conquistas, que incluía 10 medalhas em Campeonatos Mundiais em 14 provas disputadas – 4 de ouro, 2 de prata e 4 de bronze; 33 pódios em Copas do Mundo – 18 ouros, 10 pratas e 5 bronzes –; três medalhas em Grand Prix – duas de ouro e uma de prata –; um ouro nos Jogos Pan-Americanos de Lima 2019 e diversos triunfos em eventos continentais, entre outros.

Ana Marcela morde o ouro: caminho trilhado com talento, fé no trabalho e muito estudo. Foto: Breno Barros/ rededoesporte.gov.br
“Ser campeã olímpica representa toda a minha história, as vezes que eu já fui campeã mundial, as medalhas... Isso aqui serve para coroar toda a minha carreira. Mas ainda não estou 100% completa. Ainda faltam algumas coisas nessa carreira”
Ana Marcela Cunha, maratonista aquática e campeã olímpica

Mas a prova em Tóquio, em particular, distinguia-se de todas as outras. Depois de estrear nas Olimpíadas de Pequim 2008 com apenas 16 anos, quando terminou na quinta colocação, ficar de fora da disputa em Londres 2012 e não alcançar o pódio no Rio 2016, Ana Marcela Cunha estava de volta aos Jogos Olímpicos. E, desta vez, a nadadora, nascida em Salvador, em 23 de março de 1992, estava pronta.

A dedicação, a entrega aos treinos, aliado ao talento nato de Ana Marcela e a um estudo minucioso de todos os cenários possíveis que a brasileira poderia encontrar no desafio em Odaiba Marine Park culminaram na realização de um sonho que ela passou a alimentar lá atrás, na China, há 13 anos, e que acabou sendo alcançado no Japão. Aos 29 anos, Ana Marcela Cunha, finalmente, tornou-se a campeã olímpica que ela estava predestinada a ser.

A brasileira superou as 24 rivais e, com o tempo de 1h59min30s8, conquistou a medalha de ouro. A holandesa Sharon van Rouwendaal, ouro no Rio 2016, ficou com a prata (1h59min31s7) e a australiana Kareena Lee garantiu o bronze (1h59min32s5).

“Eu nunca acreditei tanto no meu sonho. Eu conto para o Fê (Fernando Possenti) que, se eu não me engano, em 2004 ou 2005, na época do nosso antigo presidente da confederação (Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos), eu ganhei uma camisa e ela falava que eu estaria nas Olimpíadas de 2008. Eu acreditei nisso e estava lá”, lembra a nadadora.

Investimentos federais

No ciclo entre os Jogos Rio 2016 e Tóquio 2021, o Governo Federal Brasileiro investiu de forma direta nos atletas da maratona aquática R$ 2,5 milhões, valor que permitiu a concessão de 100 bolsas.

“E eu acreditei tanto nas pessoas falando que eu podia hoje ou um dia ser uma campeã olímpica que esse continuou sendo meu sonho, não só o de participar, não só o de estar ali, mas conseguir uma medalha olímpica. Hoje, ser campeã olímpica representa toda a minha história, as vezes que eu já fui campeã mundial, as medalhas... Isso aqui serve para coroar toda a minha carreira, mas ainda não estou 100% completa. Ainda faltam algumas coisas nessa carreira”, avisa, deixando claro que as braçadas continuam.

“Vai ter que demorar um tempo ainda para cair essa ficha do quão grande é e do que a minha vida vai se transformar agora”, reconhece a maratonista de ouro. “Mas é o que eu sempre sonhei. Talvez no decorrer dos dias eu vá me tocar um pouquinho mais sobre tudo isso”, prossegue a campeã.

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Fernando Possenti e Ana Marcela: parceria repleta de conquistas. Foto: Breno Barros/rededoesporte,gov,br

Estudo e estratégia

As palavras que Fernando Possenti destaca abaixo deixam claro que o ouro de Ana Marcela é resultado de alguns ingredientes preponderantes. A receita inclui altas doses de trabalho exaustivo nos treinamentos somada a estudos minuciosos para a prova olímpica. Assim foi escrito o roteiro que levou a brasileira a uma estratégia pensada nos mínimos detalhes pelos dois.

“Não havia um só metro dessa prova que nós não tivéssemos estudado”, explica Possenti. “Tudo o que ela fez hoje foi pensado exaustivamente. Cada braçada, cada movimento de cabeça. Eu sabia exatamente cada milímetro de potássio que ela precisava em cada uma das passagens para a alimentação. Nós estudamos as rivais e pensamos nas estratégias que elas poderiam executar. Tudo nesta prova foi trabalhado para que a Ana chegasse aqui e pudesse nadar da melhor maneira possível”, prossegue o treinador.

Esqueça o tempo em uma maratona aquática. Nessa modalidade, as variáveis de vento, temperatura da água, condição climática, ondas e correntes tornam impossível calcular o desempenho com base apenas no tempo de chegada dos primeiros colocados.

“Estou muito feliz e esse cara foi o cara que mais acreditou em mim e foi quem fez eu acreditar em mim mesma. Então, o Fê é o cara que me trouxe até esse lugar”

Mas há um dado estatístico que mostra como Ana Marcela Cunha se comportou durante a prova e que deixa claro que, desde o início, mesmo quando não estava liderando, ela esteve no controle da situação: sua frequência de braçadas por minuto.

Com uma média que oscilou entre 33 e 47 braçadas por minuto (39,3 braçadas de média na prova), Ana Marcela fechou os 10 quilômetros após 4.669 giradas de braço que a consagraram com o ouro olímpico. A alemã, que não conseguiu atingir o pico da frequência da brasileira nos metros finais, completou o percurso com 4.672 braçadas (39,1 de média). Já a medalhista de bronze foi forçada a acelerar ainda mais seus braços durante toda a prova para imprimir o ritmo que a levou ao pódio: 5.523 braçadas (46,5 de média).

“Se o Fernando falou que não tem nada para comentar sobre a prova eu posso dizer para vocês que fomos bem”, brincou a campeã olímpica. “A impressão que deu é que ela tinha a prova sob controle desde o início”, opina o técnico de natação Alex Pussieldi, estudioso da modalidade e que acompanhou a disputa da tribuna de imprensa do Odaiba Marine Park.

“Ela nadou a prova desde o princípio sabendo o que tinha de fazer. Aquela frequência baixa dela no início chamou bastante atenção de todos. Mas, mesmo nadando com uma frequência baixa, ela nunca deixou de estar no pelotão da frente. Ela estava sempre consciente do que estava fazendo. Ao nadar com uma frequência mais baixa e estar na mesma velocidade que as demais, a Ana Marcela estava com mais energia sobrando e foi quando ela conseguiu se destacar no final”, explica Pussieldi.

Ana Marcela: 4.669 braçadas rumo ao ouro olímpico. Foto: Breno Barros/rededoesporte.gov.br
“São anos e anos tendo o Bolsa Atleta. Eu agradeço muito ao ministério e a ajuda do Governo Federal. Acho que isso foi essencial para essa continuidade”

Bolsa Atleta

Ana Marcela Cunha foi a única atleta do Brasil nas maratonas aquáticas classificada para as Olimpíadas de Tóquio, tanto no masculino quanto no feminino. Apoiada pelo Bolsa Atleta do Governo Federal durante todo o ciclo Rio 2016 – Tóquio 2021, a nadadora foi enfática a falar sobre a importância do programa de patrocínio aos atletas brasileiros.

“Eu agradeço muito. São anos e anos tendo o Bolsa Atleta, só que eu não posso falar os outros patrocinadores que estão comigo até um pouquinho antes do Bolsa Atleta. Hoje não posso citá-los aqui. Então seria injusto eu falar só de um patrocinador, mas, sim, agradeço muito ao ministério e a ajuda do Governo Federal. Acho que isso foi essencial para essa continuidade. Mas, em geral, eu queria agradecer a todos os meus patrocinadores, ao meu clube, à minha família. Todo mundo sabe quem são. Infelizmente eu não posso citá-los, mas queria agradecer a todos, em geral”.

10km à vista

Ao contrário de vários atletas que se destacaram em Tóquio e que preferiram deixar as previsões para o futuro em modo stand by, Ana Marcela Cunha deixou bem claro que o ouro olímpico serve de combustível a mais para um feito que ela ainda não atingiu.

“Eu ainda não fui campeã mundial nos 10km, que também é uma coisa importante. Então, saio daqui querendo mais para o ano que vem. Sei que elas vão treinar muito para não deixar isso acontecer”, afirma a campeã, que fez questão de fazer um agradecimento especial a Fernando Possenti, deixando claro que a parceria também segue firme. “Estou muito feliz e esse cara foi o cara que mais acreditou em mim e foi quem fez eu acreditar em mim mesma. Então, o Fê é o cara que me trouxe até esse lugar”, reconhece.

Ana Marcela, com a holandesa Sharon van Rouwendaal e a australiana Kareena Lee: pódio de um dia histórico para o esporte brasileiro. Foto: Breno Barros/rededoesporte.gov.br
“Mulher pode ser o que ela quiser, onde ela quiser e na hora que ela quiser. Resultados são isso: você conseguir ajudar dessa forma, com igualdade. Acho que as mulheres estão com aquele gostinho especial. Estou muito feliz, não só pela medalha, mas por ser campeã olímpica”

O ouro de Ana Marcela Cunha é o quarto do Brasil em Tóquio. Três deles foram conquistados por mulheres, com Rebecca Andrade, na ginástica artística; Martine Grael e Kahena Kunze, na vela; e, agora, com a maratonista aquática campeã olímpica. A quarta medalha é do surfista Ítalo Ferreira.

Indagada sobre a força das mulheres no Japão, que além dos ouros do trio citado acima ainda conquistaram duas pratas (Rayssa Leal, no skate; e Rebecca, na ginástica) e dois bronzes (Laura Pigossi e Lusia Stefani, no tênis; e Mayra Aguiar, no judô), Ana Marcela Cunha foi categórica.

“Mulher pode ser o que ela quiser, onde ela quiser e na hora que ela quiser”, afirma. “Acho que o tanto que a gente vem recebendo de ajuda e de igualdade se representa muito hoje nas medalhas que a gente conquistou. Isso que o Comitê Olímpico está fazendo, de ajudar, de acreditar, independentemente de ser masculino ou feminino e, sim, por meritocracia, faz a diferença. Resultados são isso: você conseguir ajudar dessa forma, com igualdade, e eu acho que as mulheres estão com aquele gostinho especial. Estou muito feliz, não só pela medalha, mas por ser campeã olímpica”, prossegue.

 

Hora de curtir

As emoções do pódio olímpico, desde a conquista da medalha até ver a bandeira do Brasil sendo hasteada e ouvir o Hino ser executado no caso das primeiras colocadas, são momentos que passam muito rápido. Para vários deles, as emoções são tão grandes que é preciso um tempo para que todos os momentos assentem na cabeça, na alma e no coração até que eles tenham a noção do feito que atingiram.

Depois de tantas conquistas, Ana Marcela Cunha está acostumada a levar para casa medalhas em grandes eventos. Mas o triunfo desta quarta no Japão, por ser inédito e por ser o maior de todos, ainda não pode ser medido, como ela mesmo reconhece.

Assim, depois de um dia perfeito, Ana finalmente quer voltar para casa e comemorar com a família e os amigos. Fernando Possenti não vê as filhas há 60 dias e Ana está longe das pessoas que ama pelo mesmo período. Mas a distância e todo sacrifício valeram a pena e a recompensa, agora, é eterna.

Mas Ana Marcela Cunha quer mais.

Assim, depois de matar a saudade e guardar a medalha dourada em um lugar especial, ela já sabe o que vai fazer. Quer aprender um pouco mais com o dia perfeito no Odaiba Marine Park para buscar novas conquistas. Mais do que isso, ela quer reviver os momentos da prova em Tóquio e finalmente entender como as braçadas que deu no Japão a transformaram em uma campeã olímpica.

“A gente sempre chegava e falava: ‘Poxa, dava para melhorar alguma coisa. Poxa, o final de prova não foi dos melhores. Poxa, o contorno de boia podia ter sido melhor. Eu quero rever a prova. Acho que a gente aprende muito. E foi assim que eu aprendi muito”, ensina.

“Em todas as minhas provas eu fui revendo os erros e que quero poder rever esse momento, desde a largada até a chegada, e curtir. Porque uma coisa é você estar nadando. Eu estava feliz, eu estava fazendo o que queria, mas ainda não tenho noção de como realmente foi a prova. Eu quero ter esse momento para sentar duas horinhas e ver como que foi tudo”, encerra Ana Marcela.

Luiz Roberto Magalhães – de Tóquio, no Japão – rededoesporte.gov.br